Houve uma época, quando o meu filho mais velho tinha cerca de seis anos (e o menor ainda não havia nascido), em que, três vezes por semana, eu tinha que trabalhar cedo, e o deixava dormindo. Meu marido só saía depois de encaminhá-lo para a escola, ao meio dia. Mas me incomodava muito passar o dia inteiro longe e, ainda por cima, sem ter me despedido.
Por sorte, li em algum lugar o depoimento de um pai que, diante da mesma aflição, fez o seguinte. Todo dia, antes de sair, ele amarrava uma fita na cabeceira da cama do filho, para simbolizar a sua vontade de estar ali. Como não há vergonha em imitar coisa boa, passei a fazer o mesmo. Lembro perfeitamente daquela fita verde.
Combinei com meu filho que a fita representaria o meu carinho e a minha saudade. Ele adorou a brincadeira, que para mim era muito séria. Tanto que passei a criar estratégias para não esquecer de amarrar a fita. E disse a ele que, caso isso acontecesse um dia, era apenas sinal de que eu saí muito apressada. Felizmente, nunca esqueci.
Não acho que a fita tenha substituído a minha presença. Mas ela intensificou a nossa cumplicidade amorosa. Logo que pude, mudei meu horário de trabalho, e voltei a ficar em casa todas as manhãs, para conversar sobre o sonho da noite anterior, ajudá-lo nos deveres escolares, supervisionar o banho e o almoço, levá-lo à escola.
Mas o meu filho até hoje, doze anos depois, ainda se lembra da fita verde.
(Fica a dica.)
Afetividade
Por que devemos nomear as emoções para a criança?
A educação da afetividade tem estado entre os principais temas tratados neste blog. Em artigos anteriores, mostrei a natureza e a função desse trabalho parental nos primeiros seis anos de vida. Para ler, clique aqui e aqui, Na sequência desse assunto, hoje vou fazer um pequeno complemento, explicando o quanto é importante aproveitar as situações do dia a dia para ajudar a criança a identificar as suas próprias emoções.
Sabemos que dar nome aos objetos do mundo é o primeiro passo no processo de conhecê-los. E com a realidade psíquica não é diferente. Por isso, quando a criança experimenta emoções como alegria, raiva, tristeza ou medo, é importante que a ajudemos a compreender o que ela está sentindo. Porém, devemos estar sempre atentos para o risco de criar realidades emocionais que não existem. É comum que os pais ou cuidadores projetem sobre a criança os seus próprios padrões afetivos, antecipando emoções que a criança (ainda) não está experimentando. Ajudar a criança a reconhecer suas emoções depende de se conhecer verdadeiramente a criança, de observá-la com cuidado e atenção.
Outro ponto importante é o seguinte. Quando falamos em educação afetiva, não estamos tratando somente de identificação e expressão de emoções e sentimentos. Estamos falando também de autocontrole e autotranscendência. É muito importante que a criança seja gentilmente levada a perceber que existe uma instância de nossa pessoa a que damos o nome de “vontade”, e que a vontade deve ser exercida sempre na direção do que é bom e justo. As emoções e os sentimentos muitas vezes impedem o livre exercício da vontade e é por isso – sobretudo – que precisamos identificá-los e conhecê-los. Quando conhecemos o nosso sistema emocional, tornamo-nos mais capazes de administrar nossas emoções e fazer com que elas atuem como alavancas para a vontade, e não como obstáculos. Se o trabalho de educação afetiva não for guiado por essa perspectiva, corremos o risco de aprisionar a criança em uma estrutura de sentimentalismo egoico. Ao invés de administrar suas emoções para melhor se relacionar com o mundo e com os outros, ela se torna autorreferenciada e perde a conexão com a realidade à sua volta.
Mas veja bem: as estruturas neurobiológicas que possibilitam o autocontrole e o livre exercício da vontade só se consolidam ao final da adolescência, por volta dos 20 anos de idade. Portanto, não espere desse trabalho de educação afetiva efeitos imediatos. A natureza tem seu próprio tempo. Precisamos ajudá-la, mas pensando no médio e no longo prazo. O desenvolvimento da autoconsciência é um trabalho para a vida toda e cada pessoa construirá a sua própria trajetória. Você vai apenas dar ao seu filho algumas ferramentas iniciais, emprestando-lhe um pouco da sua experiência e do seu conhecimento do mundo, para que ele desenvolva os seus próprios recursos de autorregulação e se torne um adulto capaz de exercer o domínio sobre si.
Como ajudar a criança a conquistar o autocontrole?
Ao longo dos primeiros anos de vida, no curso do processo de seu desenvolvimento afetivo e cognitivo, a criança vai se tornando gradativamente capaz de regular as suas emoções, tanto no que diz respeito às reações fisiológicas quanto ao comportamento social. Essa capacidade de auto-regulação da resposta emocional depende do desenvolvimento e da maturação de certas estruturas neurobiológicas.
Porém, como em tudo o que é humano, a educação, a influência do meio social, o ambiente de vida e, sobretudo, a relação da criança com seus cuidadores, também possuem um papel muito importante. Ou seja: precisamos ajudar a natureza em seu trabalho.
As bases neurobiológicas da auto-regulação emocional só se consolidam ao final da adolescência. Porém, isso não significa que o processo esteja definitivamente finalizado quando se adentra a fase adulta. Ao longo de toda a nossa vida, somos testados e submetidos a desafios emocionais inéditos, que podem nos desestruturar e exigir novas aprendizagens e reformulações. Pode ocorrer também que o processo não seja sido bem realizado, como constatamos ao nos relacionar com adultos imaturos, incapazes de controlar e administrar suas emoções frente a qualquer situação que lhes imponha a menor frustração. Não é muito difícil encontrar adultos que, diante de situações que exigem resiliência emocional, comportam-se como crianças.
Essa imaturidade pode resultar tanto de uma educação falha e ineficiente do ponto de vista da organização afetiva, quanto de problemas de natureza neuropsíquica que impactam os processos regulatórios, como ansiedade, impulsividade, irritabilidade, disfunções sensoriais, entre outros. Mas a questão é complexa, e é sempre muito bom lembrar que a simples observação de um padrão de comportamento emocional disruptivo ou desequilibrado, seja de uma criança ou adulto, não nos permite identificar as suas causas.
Porém, se, por lado, devemos evitar julgamentos desinformados sobre o comportamento de crianças cujas circunstâncias pessoais e familiares não conhecemos, por outro, enquanto pais e cuidadores devemos estar sempre atentos ao nosso papel de coadjuvantes do processo de regulação emocional daquelas que estão sob os nossos cuidados.
Em outras palavras, se é verdade que o fator educacional não é capaz de explicar tudo, isso não significa que ele não tenha uma importância considerável. A pergunta necessária é a seguinte: observado o fato de que, em alguns casos, a família precisará contar com a ajuda de um profissional especializado para melhor conduzir o processo, o que os pais de fato podem fazer para ajudar a criança a desenvolver a capacidade de se auto-regular da maneira mais adequada possível? Qual é a parte que nos cabe? Como devemos atuar para ajudar a natureza? Nesse artigo, vou propor um passo-a-passo que, se bem implementado e adaptado às circunstâncias específicas de cada criança e cada família, pode nos ajudar a colocar em prática aquilo que se costuma chamar de co-regulação emocional. O processo de co-regulação consiste em emprestar a criança o nosso equilíbrio emocional para ajudá-la a construir o seu.
O primeiro movimento é o de exercitar a empatia. Devemos sempre nos esforçar ao máximo para, no contexto de situações de alarme ou stress envolvendo crianças, lembrar que estamos diante de um ser humano em desenvolvimento, que ainda depende em ampla medida dos aportes do meio para ser capaz de se auto-regular. O primeiro passo é, portanto, compreender as motivações do comportamento disruptivo. Quais são as emoções em jogo? Se uma criança se joga no chão e faz uma birra homérica, a nossa capacidade de ajudá-la a extrair daquele episódio uma aprendizagem efetiva, que lhe permita conduzir-se melhor da próxima vez, depende primordialmente de termos compreendido o que se passou em seu campo emocional.
O segundo movimento é o da conexão. No momento da crise, devemos nos fazer presentes, por meio de contato visual e físico, mostrando à criança que o seu descontrole não nos desequilibra, e não nos torna incapazes de ajudá-la. Quando o seu filho tiver uma crise, fique perto, não o ignore. Os contatos visual e físico geram uma sensação de conforto e proteção, e funcionam como pontos de apoio para a criança encontrar o seu equilíbrio. É claro que, para isso, precisamos estar com as nossas próprias emoções sob controle. Para ajudar nossos filhos, é necessária uma boa dose de serenidade e paciência, principalmente nesses momentos mais críticos. Tudo o que uma criança em estado de caos emocional não precisa é que juntemos o nosso caos ao dela.
Depois de acalmar a criança, acolhendo-a com carinho e apaziguando as intensas reações físicas que acompanham os ataques emocionais infantis, podemos então passar ao terceiro movimento, que é o da validação das emoções da criança. Por mais que sejam negativas, as emoções que deram origem à crise não devem ser tratadas como aberrações. Emoções negativas não são exclusividade das crianças. Nós também as temos. A diferença está (ou deveria estar) no fato de nós já termos desenvolvido a nossa capacidade de nos controlar.
Devemos conversar com a criança sobre o que aconteceu, nomear as emoções que estiveram ali presentes e deram origem ao comportamento disruptivo, explicar que essas emoções (medo, insegurança, raiva, frustração, que é um misto de raiva e tristeza) voltarão a aparecer muitas vezes e precisarão ser controladas.
Em seguida, passamos então ao quarto movimento, o de orientação. Aqui, ajudamos a criança a extrair um aprendizado de tudo o que aconteceu, com uma direção clara. Esse movimento só começará a ser realmente efetivo a partir dos 2 anos de idade, e precisará ser modulado de acordo com as motivações da birra. É a hora de nos colocarmos como figuras de autoridade, explicando à criança quais os limites que foram ultrapassados, no caso de uma birra de frustração ou desobediência; ou quais fantasias foram criadas, no caso de um ataque por medo ou insegurança.
O objetivo é levar a criança a compreender que existe uma distância entre o seu pensamento (o que ela quer, o que ela deseja, ou o que ela imagina), e a realidade do mundo, e que essa distância precisa ser respeitada. O recado a ser passado é algo mais ou menos assim: “Não podemos fazer tudo o que pensamos ou desejamos. Do mesmo modo como muitas vezes, criamos fantasmas e problemas que não habitam de fato a realidade.” Diga isso de um modo que seu filho seja capaz de compreender.
Esses quatro movimentos também podem nos ajudar a lidar com as crises emocionais de adolescentes. Quando um adolescente perde o controle, se não formos capazes de nos conectar com ele, mostrar que compreendemos a sua emoção, mesmo a mais negativa, a conversa dificilmente transcorrerá de maneira satisfatória, principalmente se tiver que ser dura. O fato de um adolescente já ter passado por um longo processo de educação não evitará que ele viva algumas crises. A adolescência é um período de transição, em que a vida psíquica passa por um processo de profunda reorganização estrutural. Toda mudança importante gera algum tipo de crise, e mesmo os adolescentes bem resolvidos e educados passarão por momentos emocionais difíceis. Nesses momentos, a nossa ajuda ainda pode ser muito benéfica.
É preciso dizer, contudo, que esses quatro movimentos não compõem uma técnica infalível. O que estou sugerindo aqui, portanto, não é uma fórmula. Antes, é um modelo, que vai lhe ajudar a organizar suas ideias antes de agir, com consciência de seus propósitos e dos efeitos de sua ação no tempo. O sucesso de nossa atuação vai depender de muitos fatores: do estado de nossas próprias emoções no momento, da reatividade emocional da criança e, sobretudo, da intensidade de nossa conexão emocional anterior com ela. Em ampla medida, é a qualidade da nossa relação com a criança que vai definir o quanto ela poderá ser beneficiada pela nossa ajuda
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Links Relacionados:
As crises de oposição da criança: como lidar, o que fazer?
A educação da afetividade nos primeiros seis anos de vi
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Imagem: Cecrope Barilli, Mom and Child, 1870-71.
A educação da afetividade nos primeiros anos de vida

O conceito de educação que baseia o meu trabalho, no blog e nas redes sociais, tem como referência iluminadora a tradição clássica, não tanto em seus métodos, mas em sua motivação principal, que é a de colocar a criança ou o jovem no caminho da autoconsciência e da excelência moral. Nesse sentido, minha perspectiva se distancia tanto de uma visão pragmática de educação, centrada na ideia de utilidade, quanto de uma visão libertária, centrada na ideia de auto-satisfação individual. Ambas são, a meu ver, demasiadamente medíocres em seus objetivos. Devemos almejar mais do que isso.
É, portanto, tendo em vista a busca da excelência moral que se deve entender a minha formulação, já tantas vezes reiterada, de que “educar uma criança não consiste em dominar a sua natureza, e sim em conduzi-la, sempre e incansavelmente, para a frente e para o alto, ou seja, para o melhor de si mesma”.
Mas como colocar em ação esse projeto de educação nos primeiros anos de vida? O que significa exatamente educar para a excelência moral em período de tamanha imaturidade? Em primeiro lugar, é preciso compreender que a excelência moral não é um ponto de chegada, que possamos descrever ou caracterizar previamente, e de maneira substantiva. Ela deve ser, antes, um norte, uma direção, que imprimimos à educação da criança sem deixar de levar em conta a sua própria individualidade. No sentido educacional, a excelência moral será específica para cada pessoa. E, para ajudarmos a criança a encontrar o seu caminho, devemos começar pela base, pelo plano dos afetos.
Na fase de extrema dependência que se estende do nascimento aos seis anos de idade, a preocupação fundamental de quem educa deve ser com a organização da afetividade da criança. Nesse período, todos os outros objetivos educacionais – aprendizagens sociais, formação de hábitos, construção do imaginário, desenvolvimentos cognitivo – devem estar subsumidos no objetivo de ajudar a criança a construir um caminho interno que a leve gradativamente a conhecer os seus afetos e a manejá-los de forma relativamente segura. Isso tudo, é claro, respeitando pacientemente os limites impostos pela sua imaturidade.
A organização afetiva é parte integrante do processo de amadurecimento e, sendo assim, não podemos ajudar a criança pressupondo uma maturidade que ela ainda não possui. A natureza faz a sua parte, predispondo a criança à maturação, mas cabe aos educadores colaborarem ativamente com o processo de organização dos afetos, de modo que ele se integre ao desenvolvimento da linguagem, da memória, do imaginário e da volição. Em outras palavras, de modo que ele se integre a um quadro cultural e existencial mais amplo.
A criança pequena é governada pelos seus afetos, e esses costumam se expressar por meio das emoções correlatas. Entendo por “afetos”, aqui, as disposições internas que determinam o modo como a criança será afetada pelas informações e estímulos que colhe do mundo. Essas disposições têm base em sua própria constituição individual e nas experiências que ela já viveu. A “afetividade” seria o sistema, a configuração resultante do modo como os afetos estão organizados no psiquismo da criança. E as “emoções” seriam as expressões psicofísicas do fato de ela estar sendo afetada por algo. Antes de prosseguir, é importante esclarecer que apresento essas definições de maneira bem livre, e faço uso delas do modo que me parece mais útil para o nosso propósito, que é o de compreender como podemos ajudar no processo de organização da afetividade infantil.
Então, voltando ao nosso ponto: nessa definição, os afetos são tudo o que a criança pequena possui para receber e absorver as impressões que lhe chegam do mundo, e que ela expressa por meio das emoções. Para conhecer a vida afetiva da criança, é fundamental, assim, que prestemos atenção à sua vida emocional. As emoções são os elementos observáveis, materializáveis, a partir dos quais poderemos de fato atuar. E, inicialmente, para ajudar a criança em seu processo de organização afetiva, é preciso começar pela observação das emoções mais básicas. Do que ela gosta, e do que não gosta? O que a faz ficar triste ou alegre? Do que tem medo? O que desperta a sua raiva? Ajudar a criança a transitar no território dessas emoções é dar os primeiros passos na direção do autoconhecimento, da compreensão de si mesma.
Resumindo, podemos dizer que auxiliar a criança em seu processo de organização afetiva consiste em ajudá-la a conhecer as suas emoções, nomeá-las, identificar as suas causas, a sua origem, e conectar esse conhecimento à sua capacidade de decisão. No decorrer das interações cotidianas, devemos mostrar à criança, suave e naturalmente, que existe a possibilidade de exercer um domínio relativo sobre as suas emoções, ou, pelo menos, de manejá-las de maneira consciente e equilibrada, frente aos limites inevitáveis apresentados pela vida. Tais limites podem ser postos tanto pela própria estrutura da realidade, quanto pela ação dos pais no exercício de sua autoridade. Em ambos os casos, a criança deve aprender a aceitar esses limites e a manejar conscientemente as emoções decorrentes dessa aceitação.
A partir dos dois anos, e ao longo de toda a fase pré-escolar, é importante que a criança comece a ser apresentada a noções básicas de moralidade, que a ajudem a diferenciar o que é certo do que é errado, o que é justo do que é injusto, o que é adequado do que não é. Esse é o momento de começar a ouvir histórias que distingam o Bem e o Mal de maneira inequívoca, por meio de personagens claramente definidos desse ponto de vista. O discernimento psicológico da criança pequena é demasiadamente primitivo para que ela seja capaz de entender as complexidades da alma humana sem prejuízo do seu desenvolvimento moral.
Por fim, a criança, nessa fase, também deve ser estimulada a exercitar a capacidade de se colocar no lugar dos outros, a entender que não deve fazer com ninguém aquilo que não gostaria que fizessem com ela própria, ou seja, a desenvolver aquela atitude moral que costumamos chamar de “empatia”. Isso tudo será fundamental para que ela se torne capaz de lidar com as suas próprias frustrações e desenvolver o senso de dever.
Para que todo esse trabalho de organização da afetividade possa se realizar de maneira consistente e sem grandes tropeços, é preciso contar com uma condição básica. A criança precisa se sentir amada e protegida. Em dois artigos aqui no blog, mostrei que o amor dos adultos é a base sobre a qual ela se apoiará para dar os primeiros passos na direção de todas as aprendizagens que a vida vai lhe impor, começando pela organização da vida afetiva. (Leia A Importância do Apego e O Apego na Primeira Infância)
Tudo o que estou sugerindo pode parecer grave demais para uma criança de três, quatro anos. Mas não se trata de passar o dia inteiro chamando a atenção da criança para suas emoções, fazendo-a hiper consciente de si mesma o tempo todo. Trata-se, simplesmente, de não deixar passar as ocasiões que a interação cotidiana oferece para ensiná-la a se conhecer e a encontrar os seus pontos de equilíbrio. Também não estou dizendo, notem bem, que os pais têm o poder de organizar os afetos dos filhos. O processo de organização afetiva é algo que pertence à criança e que ela precisará administrar ao longo de toda a sua vida. A nossa responsabilidade, repito, é apenas a de auxiliá-la, ajudando-a a enquadrar a sua afetividade num ambiente moral mais amplo.
A partir dos sete anos, aproximadamente, uma criança afetivamente bem cuidada e provida já estará em condições de dar alguns passos mais largos. Nesse momento, com a afetividade já organizada ainda que em um nível primário, o foco da educação dos afetos deve mudar um pouco. Não será uma mudança radical, apenas um deslocamento de ênfase. Uma vez que a criança já adquiriu as noções básicas de certo e errado, compreendeu que as coisas nem sempre podem ser do modo como ela deseja, e já percebeu que pode ter alguma ingerência sobre as suas próprias emoções, o processo de educação moral deve então ser infletido na direção da capacidade de agir no mundo. O ambiente da família, que é vivenciado pela criança como uma extensão afetiva de si mesma, continuará sendo por muito tempo o seu porto e o seu refúgio, mas agora ela precisa ir ampliando os seus horizontes de maneira gradativa e segura.
Nessa nova fase, a criança deve então ser encorajada a desenvolver capacidades de ação, força e resistência para transitar em círculos sociais mais amplos, menos protegidos de maneira imediata pelos pais. Na escola de ensino fundamental, por exemplo, ela será confrontada com novas exigências, bem mais próximas das exigências da vida futura, e precisará desenvolver a sua força de vontade, a sua resiliência. É no contato com o mundo que será permanentemente animada e testada a sua fortaleza. E se o trabalho de organização da afetividade tiver sido bem conduzido nos primeiros anos, ela já terá meio caminho andado nesse sentido. A capacidade de lidar com as frustrações, de adiar o prazer, e de prever e manejar as suas próprias reações diante das intempéries do cotidiano social, representa uma mão na roda quando a criança começa a se deparar com a necessidade de se esforçar para superar obstáculos e fazer as suas primeiras conquistas realmente pessoais.
Para finalizar, tentando fechar o raciocínio, volto então à questão da excelência moral, com a qual iniciei esse artigo. Nós, pais, costumamos nos perder com muita facilidade ao longo da trajetória de condução de nossas crianças. São muitas as hesitações com as quais nos deparamos no meio do caminho, e que nos levam a duvidar de nossas próprias escolhas educacionais. O meu conselho é o seguinte. Mantenha o foco na formação da pessoa de seu filho. O que ele vai realizar, o que ele vai conquistar, depende fundamentalmente do modo como vai exercer a sua própria liberdade no momento oportuno. Não cabe a você decidir. Por isso, tenha sempre em mente que o que realmente importa é a sua qualidade moral, a sua força pessoal. De nada serve uma inteligência brilhante, uma cultura grandiosa, uma instrução impecável, sem autoconsciência e auto domínio. E isso porque o desenvolvimento moral não se refere somente ao discernimento entre o Bem e o Mal. Ele se refere, sobretudo, à nossa capacidade de colocar uma certa noção de Bem acima de nossos desejos e interesses individuais. Essa capacidade é o único sinal inequívoco de uma educação elevada.
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Imagem: Donald Zolan (1937-2009)
Dois mitos sobre o desenvolvimento da autonomia na criança
É bem sabido que, ao longo da infância, as crianças precisam ter oportunidade de vivenciar situações que lhes permitam lidar com o sentimento de frustração. Porém, do mesmo modo que não é conveniente produzir um ambiente artificial que proteja nossos filhos de qualquer incômodo ou aborrecimento, também não devemos criar artifícios frustrantes apenas com o objetivo de educá-los. As próprias circunstâncias da vida, das quais somos na maioria das vezes os representantes ou porta-vozes, vão se encarregar de colocar limites à ânsia infantil de satisfação plena.
Nesse artigo, quero falar sobre dois mitos que podem levar pais naturalmente amorosos e atenciosos a lidar de maneira inadequada com as necessidades emocionais de seus filhos. É muito difundida, por exemplo, a ideia de que “colo demais estraga a criança.” Isso não é verdade. Colo não “estraga” a criança, se entendermos “estragar” como “afetar negativamente o seu desenvolvimento rumo à maturidade emocional”. Nesse sentido, é justamente a falta de colo que se torna um problema. A criança procura o colo quando precisa de consolo, aconchego ou proteção. Negar-lhe isso é falta de cuidado e empatia.
A criança carente de atenção e cuidados precisa gastar muita energia tateando às cegas o caminho da auto estruturação emocional, ao passo que aquela que confia no amor dos pais fica liberada para expandir as capacidades que lhe permitirão conquistar a autonomia afetiva. Agora, se “estragar” significa simplesmente que a criança vai se acostumar com o colo e vai solicitá-lo sempre que precisar ou desejar, isso é a mais pura verdade. E é muito bom que seja assim. Nada melhor do que conhecer o mundo e se familiarizar com ele do alto dos ombros das pessoas em quem mais se confia.
A mesma linha de raciocínio pode ser aplicada na desconstrução de outra tese também muito difundida e equivocada, a saber, de que deixar a criança chorar à noite faz com que ela se torne independente e aprenda a dormir sozinha. Do absurdo dessa ideia só podemos concluir que seus defensores jamais se deram ao trabalho de investigar os motivos do choro infantil noturno; ou que, pelo menos, preferem não levar isso em consideração.
Até cerca de 4 meses de idade, aproximadamente, o bebê chora durante a noite porque precisa ser alimentado em intervalos curtos. No entanto, mesmo passada essa fase, e quando os ciclos das mamadas se tornam mais longos e ritmados pela alternância entre o dia e a noite, a maioria ainda continua a chorar. É perfeitamente natural que as crianças, assim como os adultos, tenham o sono interrompido algumas vezes durante a noite. Porém, enquanto nós conseguimos retomá-lo sem mesmo nos darmos conta desses leves despertares, a criança pequena tem dificuldade para voltar a dormir sozinha.
Tudo isso é questão de maturidade hormonal e neurológica. Não há quase nada a se fazer para mudar essa situação. Talvez a única providência interessante seja criar uma rotina diária que não deixe a criança muito agitada e que a leve, aos poucos, a internalizar os padrões de horários de sua família. No mais, é preciso dar tempo ao tempo.
Em geral, a maioria das crianças se torna capaz de dormir a noite inteira aos três ou quatro anos de idade. Para algumas, porém, essa conquista pode vir ainda mais tarde. Os métodos que prometem fazer com que toda e qualquer criança durma como um adulto precisam ser vistos com suspeição. Quando se trata de educação e criação de filhos, devemos sempre desconfiar das fórmulas genéricas e universais, que na maioria dos casos só servem para criar nos pais ansiedade e sensação de derrota, além de estressar as crianças.
O fato é que uma criança pequena, em geral, só se percebe segura se estiver perto de seus adultos de referência. Quando acorda à noite e nota que está só, sente-se desprotegida. Você já reparou que quando pensamos em um problema durante a noite ele sempre parece mais grave? O mesmo acontece com a solidão e os medos infantis. Por isso, deixar uma criança chorar à noite é negar a ela a proteção e o aconchego de que necessita justamente no momento do dia em que se imagina mais vulnerável.
Se uma criança acumula a experiência de ser deixada a chorar sozinha à noite, é possível que em alguns dias ela de fato pare de chorar, como argumentam os defensores dessa estratégia. Mas o que eles não dizem, ou não levam em consideração, é que isso tudo tem um preço. Ninguém pode acreditar honestamente que o choro da criança cessou porque ela encontrou na falta de resposta dos pais a chave para o desenvolvimento repentino de sua autonomia e independência. É bem mais plausível supor que ela desistiu de chorar porque entendeu que eles, definitivamente, não estão disponíveis para atendê-la naquela situação.
Não se trata de sugerir que os pais saiam correndo, desesperados, na direção da criança que chora no berço, como se fossem evitar uma tragédia. O importante é que lhe mostrem que estão sempre atentos às suas necessidades emocionais. Mas não há uma regra de como proceder na prática. Cada família deve criar as suas próprias estratégias, de acordo com o seu perfil e as suas particularidades.
Para muitas pessoas, ter que se levantar várias vezes à noite pode ser muito difícil, e até mesmo extenuante. Mas o fato é que criar bem uma criança envolve mesmo uma boa dose de abnegação. De todos os sacrifícios que temos que fazer na vida, aqueles que realizamos pelos nossos filhos são os que mais valem a pena. Um dia eles serão capazes de dormir a noite inteira sem que precisemos confortá-los. E quando menos esperarmos já não caberão mais no colo. Será então gratificante saber que foi a nossa atenção que lhes propiciou a serenidade necessária para que aprendessem a enfrentar a vida apoiados em suas próprias pernas.
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Imagem:
Trent Gudmundsen
Crescer de verdade: aprendendo a empatia e o autodomínio
Volta e meia, aqui no blog, falo sobre ajudarmos nossos filhos a desenvolver o autodomínio e a empatia. Embora o florescimento dessas capacidades esteja previsto no processo típico de amadurecimento que se desenrola durante a infância, a educação também possui um papel fundamental. Pois mesmo que algumas crianças já estejam, pelo temperamento, naturalmente mais predispostas, outras precisam de incentivo para atualizar de maneira satisfatória essas capacidades.
Principalmente no mundo de hoje, em que se celebra acima de tudo o utilitarismo, o individualismo, a impulsividade, e a busca sôfrega do prazer, uma criança mal orientada corre o risco de não conseguir, do ponto de vista cognitivo e emocional, crescer de verdade. Atualmente, o que mais vemos são adultos autocomplacentes, imaturos e cheios de vontades, que não conseguem adiar satisfação, sofrem por ter que fazer escolhas, tudo querem e tudo exigem para si. Adultos infantilizados que não suportam a estrutura da realidade, e vivem como se a ordem do mundo tivesse que se curvar aos seus desejos, e não o contrário.
Ora, para esse tipo de pessoa, tão característico de nossa época, qualquer projeto que implique controlar impulsos e aceitar perdas ou frustrações é experimentado como um fardo gigantesco. Isso se traduz na enorme dificuldade em lidar com relações que, por sua própria natureza, envolvem a necessidade de renunciar frequentemente à nossa própria satisfação para satisfazer as necessidades de outrem, como é o caso, sabidamente, das relações conjugais e parentais.
Mas, felizmente, enquanto nossos filhos estão debaixo de nossas asas, temos tempo hábil para defendê-los da cultura do infantilismo e do irrealismo, criando condições para que alcancem patamares mais elevados de autodomínio, consciência da realidade e de si mesmos. Precisamos levá-los a compreender que não podemos ter tudo o que desejamos, nem falar tudo o que pensamos; que todos os nossos atos e escolhas têm alguma consequência, e que lidar com isso não é nenhuma tragédia. Ao contrário: que é precisamente ao aceitar os limites dados pelas nossas circunstâncias – algumas herdadas, outras escolhidas – que nos tornamos capazes de nos projetar como seres realmente livres e autogovernados. Mas como transmitir-lhes essa mensagem?
As crianças aprendem valores e princípios morais de duas maneiras: pela assimilação dos preceitos que lhes são transmitidos e pela imitação dos modelos que lhes são apresentados. Depois de completados os dois primeiros anos de vida, já é perfeitamente viável conversar com elas, explicar por que essa ou aquela vontade não pode ser satisfeita naquele momento, ou mesmo por que certo desejo não poderá ser satisfeito jamais. Ensinar que, muitas vezes, vale a pena abrir mão de uma satisfação imediata em nome de outra mais duradoura ou de maior valor.
Também já é possível, aproveitando o contexto de situações cotidianas muito simples, estimular a criança a observar e levar em conta a perspectiva dos outros. Tudo isso, é claro, dentro dos limites de sua capacidade cognitiva e de seu nível de compreensão linguística. Não devemos esperar que os pequenos reajam aos preceitos que lhes são passados com uma mudança imediata de comportamento. Educar é um projeto de longo prazo. Porém, para a maioria das crianças, os preceitos não serão eficazes se não vierem acompanhados de exemplos consistentes. A regra do “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço” pode até funcionar para algumas, mas não para a grande maioria. Isso é particularmente verdadeiro no caso da empatia, uma vez que o desenvolvimento dessa capacidade está estreitamente relacionado à qualidade da atenção parental.
A criança não está plenamente pronta para agir movida pela empatia antes dos quatro anos de idade, mas ela tem a sua primeira lição a respeito do que significa “colocar-se no lugar dos outros” quando percebe que os pais são capazes de adivinhar os seus sentimentos e atender as suas necessidades. Nesta, sobretudo, mas também em todas as outras áreas da afetividade social, o seu comportamento vai sendo atualizado pela imitação do comportamento das pessoas encarregadas dos seus cuidados e às quais ela é apegada.
Mesmo levando em conta as variações individuais, sempre haverá imitação. Por isso, temos que tomar muito cuidado com o modo como nos comportamos e com as palavras que utilizamos na frente das crianças. E não devemos jamais deixar de estar atentos aos seguintes pontos. Será que estamos impregnados, também nós mesmos, pela cultura do infantilismo e do irrealismo? Assumimos com coragem e maturidade a tarefa de dirigir a educação de nossos filhos? Eles encontram em casa bons modelos de adultos – e de pais? A quantas anda a nossa própria capacidade de autodomínio? Que exemplo lhes damos quando somos expostos a uma frustração? Temos sido capazes de compreender os seus estados emocionais e de nos fazer presentes sempre que eles precisam, mesmo que isso signifique alterar substancialmente as nossas agendas?
Somos imperfeitos e sempre passíveis de errar. Aceitar esse fato também é sinal de equilíbrio e sabedoria. Mas ao refletir e tomar consciência das falhas de nossa própria formação afetiva, podemos elevar as nossas expectativas e crescer na temperança junto com os nossos filhos. A busca permanente do aperfeiçoamento pessoal é a parte mais difícil da tarefa de quem educa. Mas não deixa, por isso, de ser gratificante. Nossas crianças têm este imenso poder: fazer com que nos tornemos pessoas melhores.
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Vickie Wade, “Dad`s Helper”.
O teste da (sua) atenção
Cada criança é um indivíduo único no mundo. Jamais encontraremos duas que acolham e reajam às impressões do mundo exatamente do mesmo modo. Até aí, nenhuma novidade. Porém, ainda assim, poucas pessoas se dão conta de que não é possível falar em educação, principalmente em educação doméstica, se o fator individualidade não for levado seriamente em consideração. Para que possamos bem orientar nossos filhos, precisamos, antes de tudo, percebê-los como eles são. E construir, por meio da constância da nossa presença e do nosso cuidado cotidiano, um conhecimento compreensivo acerca de suas formas de estar no mundo, de seus modos típicos de sentir e reagir, de seus limites, de suas potencialidades. Quem tem mais de um filho sabe perfeitamente: o que funciona com um, não funcionará necessariamente com o outro. E o motivo é simples: pessoas são singularidades, e educar uma criança consiste em fazê-la realizar a sua condição singular do modo mais elevado possível.
Por outro lado, há uma característica comum a todas as crianças pequenas e que está ligada não ao domínio do temperamento, e sim à sua condição de pessoas ainda em formação, ou seja, à sua imaturidade física e cognitiva. Elas são naturalmente inseguras: assustam-se com facilidade, temem gente estranha, e por isso estão sempre buscando estar próximas de nós, e atrair o nosso olhar. Percebem-se extremamente dependentes de nossa intervenção em suas vidas, mas não conseguem representar mentalmente o afeto e o cuidado que lhes dispensamos. Essas características estão interconectadas e compõem o pano de fundo que todo pai e toda mãe de criança de menos de 4 ou 5 anos já conhece: para elas, é tudo ou nada, e só vale o aqui e agora.
Por mais que nossos filhos sejam bem atendidos e bem cuidados, muitas vezes, quando não estamos disponíveis naquele momento exato em que solicitam a nossa atenção, eles sentem e reagem como se o seu pequeno mundo estivesse a perigo. E isso não ocorre por mero capricho. Como Charlotte Mason formulou, há cerca de um século, em seu livro “Formation of Character”, ao contrário de nós, adultos, as crianças prescindem da experiência de vida que nos traz a esperança de que as coisas podem melhorar. E como são ainda incapazes de regular suas próprias emoções, elas se desesperam e se descontrolam. Por isso, enquanto realizamos a tarefa fundamental de ajudar nossos filhos a desenvolver o auto-controle e a empatia, capacidades tão importantes para uma vida adulta equilibrada, eles permanecem, por longos anos, extremamente dependentes de nossa atenção e da sensação de segurança que ela produz.
A verdade, porém, é que nem sempre conseguimos dar a eles toda a atenção que julgamos necessária, seja por razões de ordem interna (podemos estar cansados, preocupados, deprimidos, mal-humorados), seja devido às demandas externas, que muitas vezes nos atropelam e nos levam a deslocar o foco. Mas, ainda assim, vamos levando, com pequenos ajustes aqui e acolá. Pais realmente comprometidos e dedicados estão sempre tentando se superar para equilibrar as coisas de modo a favorecer as crianças. Isso não significa satisfazer todas as suas vontades, nem fazer com que se sintam o centro do mundo, e sim garantir condições de segurança emocional para que elas possam se desenvolver sem obstáculos afetivos muito impactantes.
Porém, o que dizer daquelas fases em que percebemos que o comportamento de nosso filho se desviou consideravelmente do padrão? Quando uma criança naturalmente serena e confiante amanhece um dia muito nervosa e insegura, assim permanecendo por um longo período? Ou quando uma criança apenas ligeiramente agitada torna-se de repente uma força da natureza impossível de se controlar, opondo-se a tudo e a todos com agressividade? Ou quando aquela, que é naturalmente atenta e solícita, mostra-se apática e desinteressada de tudo? Vários fatores podem levar uma criança a apresentar um comportamento fora da curva, que nos leve a suspeitar que algo está errado. O que fazer então?
Desde que descartada a possibilidade de uma causa física, antes de procurar ajuda ou aconselhamento, sugiro que você faça o teste da atenção. Ele consiste, simplesmente, em trabalhar com a hipótese de que seu filho esteja precisando ficar mais tempo com você. Intensifique a sua presença e a sua interação com ele. Dê-lhe atenção concentrada durante algumas horas, um suplemento de colo e de carinho, além do habitual. Converse, mostre-se disponível, leve para passear. Muitas vezes, você verá, um pequeno ajuste no foco já é suficiente para normalizar a situação e fazê-lo reencontrar o eixo.
Se, após essa intervenção, a criança voltar ao seu padrão habitual de comportamento, isso pode significar que você, de fato, andou ligando o piloto automático. Mas não necessariamente. É possível, também, que a alteração tenha sido deflagrada por outro fator, por algo que talvez estivesse mesmo fora de sua alçada. De todo modo, qualquer que tenha sido o motivo, só você (pai ou mãe) poderia tê-la ajudado a recuperar a estabilidade perdida.
Nossos filhos precisam ter a certeza de que podem repousar em nosso amor, sempre que precisarem. E a atenção é a forma como o amor se exprime aos olhos da criança pequena.
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Imagem:
Lilla Cabot Perry (1848-1933), “My Lamb”, 1912.
Dica simples para ensinar seu filho a lidar com a frustração
Se você está lendo este texto, é porque se preocupa com a formação afetiva de seu filho e quer ajudá-lo a se tornar uma pessoa equilibrada. Mas esse é precisamente o aspecto do trabalho parental que costuma vir mais acompanhado de dúvidas e hesitações. A maioria dos pais se pergunta, por exemplo: como agir naquelas situações em que a criança perde o controle de si mesma por não ser capaz de lidar com alguma frustração? Estou falando daquele tipo de comportamento que costumamos chamar de “chilique”.
Não está em nosso poder definir a configuração afetiva de nossos filhos quando adultos. Mas é, sim, nosso papel ajudá-los em duas conquistas fundamentais: a autoconsciência e o autocontrole. Sem esse auxílio, o caminho deles pode ser muito mais árduo e tortuoso. E, dependendo do temperamento da criança, corremos o risco de ver o chilique se cristalizar como padrão de reação vida afora. Afinal de contas, quem não conhece adultos incapazes de lidar com frustrações sem perder o controle de si mesmos…?
Mas como ajudar a criança nesse sentido? Se você é leitor assíduo de meus textos, já sabe que eu não acredito em fórmulas educacionais prontas e universais. Cada criança é um indivíduo único no mundo e o que funciona com uma não funcionará necessariamente com outra.
Recentemente, porém, me deparei com uma dica simples e útil. Ela me pareceu tão interessante que resolvi compartilhá-la aqui. Encontrei-a num artigo intitulado “Como desarmar o chilique de um filho com uma pergunta”, de autoria de Fabiana Santos, e publicado no blog “Tudo Sobre Minha Mãe”. Transcrevo o trecho central:
“(…) quando um chilique começar – seja porque o braço da boneca saiu do lugar, seja porque está na hora de dormir, seja porque o dever de casa não saiu do jeito que ela queria, seja porque ela não quer fazer uma tarefa – seja o motivo que for, podemos fazer a seguinte pergunta para a criança, olhando nos olhos dela e com bastante calma: “Isto é um problema grande, um problema médio ou um problema pequeno?
Aqueles momentos pensando a respeito do que está acontecendo à sua volta, sinceramente, pelo menos aqui em casa, se tornaram mágicos. E todas as vezes que faço a pergunta e ela responde, a gente dá um jeito de resolver o problema a partir da percepção dela de onde buscar a solução. Um pequeno sempre é rápido e tranquilo de resolver. Algum que ela considera médio, muito provavelmente será resolvido mas não na mesma hora e ela vai entender que há coisas que precisam de algum desdobramento para acontecer. Se um problema for grave – e obviamente que grave na cabeça de uma criança não pode ser algo a ser desprezado mesmo que para a gente pareça bobo – talvez seja preciso mais conversa e atenção para ela entender que há coisas que não saem exatamente como a gente quer.”
Levar a criança a refletir sobre o tamanho do problema, e a colocar-se em perspectiva de resolvê-lo, é uma estratégia bem interessante. Mas ela me parece particularmente indicada quando o descontrole surge a partir de uma situação com a qual a criança se deparou sozinha (um brinquedo que se desencaixa, uma atividade difícil de realizar). No caso de uma frustração resultante da ação dos pais ou de circunstâncias mais amplas, o cenário é um pouco mais complexo, porque entram em jogo questões de relacionamento, autoridade, hierarquia, respeito às regras. Há uma diferença clara entre perceber que um brinquedo desencaixado pode ser um problema de fácil solução e aceitar que está na hora de ir para a cama. Nesse último caso, não se trata tanto de dimensionar um problema, e sim da criança entender que há certas decisões que sempre caberão aos adultos.
Mas quando o motivo do descontrole não envolve questões de autoridade e respeito às regras, o mais importante é mesmo levá-la a prestar atenção no ocorrido e nos sentimentos que ele suscitou. Nem sempre o resultado da conversa será como desejamos. E é preciso inclusive ter a sensibilidade de avaliar se o estado de descontrole da criança permitirá que ela entenda o que você vai dizer. Sempre vale acalmá-la antes de propor a questão.
De todo modo, mesmo que a criança se recuse a responder, a pergunta sobre o tamanho do problema vai ficar reverberando em sua mente. Com o tempo, ela compreenderá que um problema sempre parece menor quando somos capazes de observá-lo à distância. E também perceberá que boa parte deles não merece tanto dispêndio de emoção e energia. Com isso, ela estará dando um passo importante na direção da auto regulação emocional e da construção de uma personalidade equilibrada.
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Imagem:
Frederik Morgan (1847-1927), “Never mind”, 1881.
Por que o choro da criança nunca deve ser ignorado?
O choro é a única forma eficaz de comunicação que a criança pequena possui. Até que a fala esteja desenvolvida a ponto de permitir que se expresse de maneira competente, ela vai chorar toda vez que estiver diante de uma situação que não pode enfrentar sozinha e que lhe causa um nível de stress físico ou emocional além de sua própria capacidade de auto regulação.
Não se deve esperar que uma criança seja capaz de substituir o choro pela comunicação verbal, ou por qualquer outro tipo de comunicação, antes dos 3 anos de idade. Mas a verdade é que poucas coisas incomodam tanto um adulto quanto o choro infantil. E isso não é à toa. Da mesma forma que as crianças são programadas pela natureza para chorar quando experimentam algum tipo de desconforto físico ou emocional, os adultos são programados para reagir ao choro com estratégias para fazê-lo cessar.
A primeira e mais natural reação da mãe que ouve o choro de seu filho pequeno é ir até ele, e pegá-lo no colo. É precisamente por ser estressante que o choro funciona como tem que funcionar: direcionando a atenção do adulto para a criança que chora e estimulando-o a entrar em campo no seu papel de mediador entre ela e o mundo.
Muitas vezes, porém, o choro se torna algo difícil de se lidar, principalmente quando as causas não são evidentes ou de fácil solução. Antes de mais nada, é preciso manter a calma. O fundamental é que a criança perceba que você está disponível e que ela terá a sua atenção. Se a causa for algum mal-estar físico, será preciso agir objetivamente, oferecendo o antídoto certo para o seu desconforto. Quando a criança chora porque está se sentindo só, desprotegida, entediada, ou porque se desestabilizou com algum estímulo externo, o choro tende a cessar quando ela é levada ao colo, aconchegada e (principalmente no caso do bebê novinho) embalada. Ouvir a voz dos pais também tem um efeito calmante.
Até o final do primeiro ano de vida, o choro é sempre sinal de algum desconforto físico ou emocional imediato. A partir dos doze meses, porém, o cenário se complica um pouco. Na medida em que adquire maior competência motora e cognitiva para explorar o ambiente que a cerca, a criança começa a ampliar a sua gama de necessidades. Ela passa a colecionar desejos que nem sempre podem ser satisfeitos. Surgem então outros tipos de choro, a que costumamos nos referir como “manha”, “birra”, ou “chilique”.
É sempre importante ter em mente que não existe choro sem motivo. Para uma criança pequena, ter que ir embora da pracinha, por exemplo, pode representar uma grande tragédia! Não obstante, existem motivos a que os adultos não podem ou não devem ceder. É preciso ensinar à criança que nem todos os seus desejos poderão ser satisfeitos, que existem limites ao que ela pode obter do mundo. Mas sempre de maneira gentil e acolhedora. Muitas vezes, basta distrair a criança para que ela esqueça o motivo do choro. Quando isso não ocorre, o melhor é tentar acalmá-la; de maneira afetuosa, porém firme.
Antes dos três anos de idade, a criança não é capaz de representar mentalmente o afeto e a atenção que recebe. Ela só entende os adultos com base na forma como eles se comportam: o que dizem, o que fazem, como reagem. Por isso, quando os pais simplesmente ignoram o seu choro, transmitem-lhe a mensagem de que ignoram os seus sentimentos, mesmo que isso não seja verdade. É preciso chegar junto da criança nesses momentos, conversar com ela e ajudá-la a compreender as suas próprias emoções e reações.
Voltando ao exemplo da saída da pracinha: você pode lhe dizer, por exemplo, que entende o seu aborrecimento, mas que é realmente necessário voltar para casa, e que a pracinha estará lá, no mesmo lugar, quando ela retornar no dia seguinte. Talvez ela não pare logo de chorar, mas certamente vai aprender que existe uma conexão entre aquilo que sente e a forma como reage. Conhecer suas próprias emoções é um passo importante para que ela aprenda a lidar com as frustrações.
Para resumir, o choro é uma janela que nos permite ver o mundo com os olhos da criança, nos dá acesso ao seu universo afetivo e nos possibilita guiá-la na direção do autoconhecimento e da auto regulação emocional. Se você conseguir encará-lo dessa forma, vai lidar com ele com muito mais segurança e tranquilidade.
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Imagem:
Lilla Cabot Perry (1848 – 1933), “Mère et enfant”, 1910.
Entre o apego e a exploração
Desde os primeiros dias de vida, o bebê observa o seu ambiente, tentando extrair dele informações. Ainda muito novinho, é capaz de agitar o corpo na direção de um estímulo auditivo. Com algumas semanas, presta atenção nas figuras com contorno, principalmente nos rostos humanos. Logo que consegue, pega objetos e os examina, apalpando-os e/ou colocando-os na boca. Aos seis meses, já gosta de olhar as ilustrações coloridas de um livro. Em todas essas ações, ele está sendo movido pelo instinto de exploração. Mas enquanto mantém um olho no mundo, o outro está ocupado em saber onde está a sua mãe.
De acordo com a teoria do apego, desenvolvida por John Bowlby e seus seguidores, há sempre duas tendências instintivas influenciando as ações da criança pequena, e cada uma delas se atualiza em um conjunto específico de comportamentos. De um lado, estão os comportamentos de apego, por meio dos quais a criança procura manter-se perto da figura materna. De outro lado, os comportamentos de exploração, que visam alargar o seu conhecimento do mundo, e implicam a necessidade de deslocar o foco da mãe para outros objetos.
Embora esses dois conjuntos de comportamento coexistam, eles são, portanto, conflitantes. Mas o conflito entre a necessidade de se apegar e a necessidade de explorar só se torna de fato relevante quando o bebê adquire habilidades motoras que lhe permitem distanciar-se fisicamente de sua base protetora. Quando aprende a engatinhar ou a andar, ele começa a realizar explorações no entorno e para isso se afasta voluntariamente da figura materna. Porém, em geral, retorna imediatamente ao seu porto seguro logo que se percebe só. Isso ocorre porque, durante toda a primeira infância, o instinto do apego prepondera sobre o instinto de exploração.
A partir dos quatro anos de idade, quando o vínculo com a figura materna está (ou deveria estar) plenamente formado, aí sim o sistema de apego começa a se tornar menos ativo, permitindo que a criança desenvolva um interesse mais abrangente pelo mundo. Nessa fase, ela já está mais preparada física e cognitivamente para absorver estímulos que antes poderiam provocar alarme ou estresse. Além disso, as próprias circunstâncias de sua vida já se tornaram relativamente familiares. Isso não significa de modo algum que a criança se desapegue. Ao contrário. Significa apenas que, tendo cumprido a sua função de criar, nos primeiros anos, uma base segura para o desenvolvimento, o sistema de apego passa a atuar com menos amplitude e intensidade.
Com essa idade a criança também já avançou em duas outras conquistas importantes. Ela já é capaz de representar mentalmente o cuidado e a atenção maternos, o que lhe permite prescindir da presença física da mãe por intervalos de tempo mais longos. E também já percebe que as outras pessoas possuem sentimentos e motivações próprios, o que torna possível a sua participação em algumas situações sociais fora do círculo familiar.
Acontece, porém, que para a grande maioria das crianças, essa transição não é suave. Assim como todas as outras transições que marcam o desenvolvimento humano, ela envolve uma pequena crise, que ocorre em algum momento a partir dos dois anos de idade.
A criança de dois anos
Ao longo do terceiro ano de vida, encorajada por uma relativa autonomia motora e comunicacional, e tranquilizada pelo fato do mundo não ser mais um lugar tão novo e estranho, a criança começa a testar de maneira contundente a sua própria autonomia. Agora, em muitas ocasiões, ela faz questão de explorar o seu pequeno mundo (pretensamente) sem amparo ou ajuda. Nos limites da pequena e limitada esfera de vida que ela já conhece por hábito, nasce o desejo de ensaiar uma relativa independência.
Dependendo do temperamento da criança, esse impulso de independência se traduz na prática em atitudes de ardente teimosia, como querer escolher e/ou vestir sozinha suas próprias roupas, insistir em subir sem ajuda uma escada, recusar-se a ser conduzida pela mão na rua. Em outros casos, ele pode se limitar à vontade de tomar decisões sobre a sua rotina. “Não quero comer”, “não vou tomar banho”. O fato é que, em algum momento a partir dos dois anos de idade, a maioria das crianças começa a dizer “não” de um modo que, aos adultos, parece quase obsessivo.
Quando contrariadas, algumas fazem birra, deitam no chão e gritam até levar os pais a um nível de constrangimento e desespero que muitas vezes faz com que eles próprios se descontrolem. Com ou sem birra, é preciso ter serenidade para lidar com a criança nessa fase. O importante é que os pais não valorizem demais esses comportamentos, nem se intimidem com eles. A única coisa a fazer é tentar acalmá-la, ajudando-a a compreender e organizar as suas próprias emoções, e mostrando-lhe que é possível recuperar o equilíbrio perdido diante de uma frustração inevitável.
Porém, ter serenidade diante da birra não significa de modo algum retroceder e deixar que a criança faça o que quer. Provavelmente, a birra foi ocasionada por algum limite imposto pelos pais ou pelas circunstâncias do momento. Nos dois casos, é importante manter a firmeza, explicando a ela a razão de ser do limite.
Muitas vezes, a impressão que se tem nessa fase é que a criança está mais estressada. De certa forma, isso é verdade. Ela vive um conflito entre a necessidade, ainda premente, de estar fisicamente vinculada, e o impulso de se individualizar, que se manifesta principalmente pela vontade de testar a sua capacidade de agir e de descobrir coisas novas. O sistema de exploração vai se tornando cada vez mais ativo, mas ainda colide com o instinto de apego, que implica em se colocar inteiramente sob a proteção e os cuidados maternos. É preciso dar tempo ao tempo, sempre lembrando que tudo isso faz parte do processo típico de desenvolvimento infantil.
Por outro lado, é muito importante que os pais não percam de vista o seu papel de educadores. Nos momentos de descontrole da criança, é possível manter uma atitude compreensiva e paciente sem abandonar o dever de guiá-la no rumo certo. Aos poucos, ela deve ser levada a entender que nem todos os seus desejos podem ser satisfeitos e que há coisas que só os pais podem decidir.
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Imagem:
Cécile Veilham
http://www.veilhan-cecile.book.fr
Tradução da citação:
“Quando nossos pequenos se encontram tomados por fortes emoções, nosso dever é transmitir a eles a nossa tranquilidade, e não nos deixar levar pelo seu caos”. (L. R. Krost)
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