A maternidade e suas circunstâncias

picasso

Existe uma estreita relação entre o modo como um grupo ou sociedade elabora e representa a maternidade e a qualidade e a extensão dos cuidados afetivos oferecidos às suas crianças. Um exemplo de sociedade que não se preocupou em garantir um ambiente amoroso e acolhedor à primeira infância foi a França dos séculos XVII e XVIII. Nesse período, as mulheres francesas habitantes das cidades simplesmente não cuidavam de seus filhos, como mostra Elisabeth Badinter em seu livro “O Amor Conquistado” (1980).

Segundo Badinter, as crianças eram entregues a amas camponesas que delas se ocupavam até que completassem aproximadamente cinco anos. Apenas uma ínfima minoria era amamentada por suas próprias mães (cerca de 5%). Para as famílias ricas, havia a opção de manter a criança junto com a ama na residência materna, em uma ala separada onde ela não teria contato cotidiano com os pais. Mas o destino da maioria era ser tirada de casa logo após o nascimento, com a justificativa de que os ares do campo beneficiavam a saúde e o desenvolvimento infantil. Boa parte das crianças, porém, morria antes dos cinco anos de idade, e muitas delas sem jamais ter recebido uma visita dos pais. Um número significativo perecia já durante o trajeto, que não raro era feito em carroças repletas de bebês amontoados.

Elisabeth Badinter, a autora do livro citado, é uma feminista da segunda onda, e seu propósito no livro é defender a tese de que não existe instinto materno. Não creio que ela o tenha conseguido, mas não é bem esse o ponto que quero discutir aqui. Estou interessada nos dados que Badinter traz à luz sobre as relações das mulheres francesas com a maternidade no final do Antigo Regime. Esses dados mostram, de maneira eloquente, como uma cultura pode desestimular enfaticamente o exercício da responsabilidade materna. No caso da França urbana dos séculos XVII e XVIII, o abandono dos bebês era uma decisão coletiva, uma prática social corroborada e incentivada por todos, inclusive, e sobretudo, pelo pai da criança. Muitas vezes, para facilitar as coisas para a mulher em estado puerperal, ele próprio se encarregava de fazer o bebê deixar rapidamente a casa. Em suma, a criança pequena era vista como um estorvo. E temos aqui um exemplo claro de desvalorização cultural da maternidade.

As representações culturais da feminilidade são a matéria simbólica a partir da qual se constroem as perspectivas sociais e existenciais de uma mulher. Se a menina se forma em um ambiente pobre em preceitos e modelos positivos de maternidade, ela provavelmente a viverá de maneira conflituosa. Se, ao contrário, a atividade materna está incorporada ao seu ideal de feminilidade, a experiência tende a ser vivenciada de maneira mais suave e mais íntegra. Para ilustrar o contraste, vou apresentar um caso etnográfico que observei e descrevi pessoalmente, durante o período em que realizava pesquisas antropológicas na Amazônia.

Passei algum tempo em comunidades indígenas ribeirinhas do rio Uaupés (afluente do alto rio Negro), na fronteira com a Colômbia. Minha pesquisa era com as mulheres e, logo que cheguei na primeira comunidade, um fato me chamou atenção. Se uma mulher possui um filho de menos de dois anos de idade, raramente será vista sem ele nos braços. O bebê parece ser uma espécie de extensão do corpo da mãe. Ela o leva para o banho, para a roça, para a rede de dormir, para as festividades. Atende às suas necessidades imediatas com tamanha prontidão que é praticamente impossível ouvi-lo chorar por mais de alguns instantes. A lida cotidiana da mulher em casa e nas plantações não é impedimento para que a criança tenha atenção ininterrupta. No alto rio Negro, observamos a expressão etnográfica mais rematada da famosa formulação do pediatra e psiquiatra inglês Donald Winnicott: “não existe algo como um bebê, o que existe é um bebê e mais alguém” (“there is no such thing as a baby; there is a baby and someone”). Parafraseando, eu diria que “o que existe é um bebê e sua mãe”. Na própria cosmologia dos índios do rio Uaupés encontramos a ideia, de certo modo análoga, de que o colo da mãe é a primeira e mais fundamental instância de formação da alma e da pessoa da criança.

As mulheres do rio Uaupés vivem nas comunidades de origem de seus maridos e os filhos do casal pertencem à linhagem do pai. A roça e a residência do casal são domínios femininos, e a integração prática entre os dois aspectos centrais da subjetividade social da mulher – as suas capacidades produtiva e reprodutiva – é sustentada por uma elaboração cultural que tematiza essa continuidade simbólica. O trabalho na roça é representado como uma maternidade metafórica. A mulher é a “mãe de suas plantações”, o que significa que ela precisa cuidar de seus frutos para que eles cresçam fortes e saudáveis. Durante os rituais de iniciação feminina por ocasião da menarca, a associação entre a maternidade e a atividade agrícola é enfatizada e valorizada. A moça é preparada para assumir suas responsabilidades como provedora de alimentos e de cuidados cotidianos para sua família. Ela aprende a se orgulhar de suas habilidades especificamente femininas e a encará-las como uma fonte importante de satisfação pessoal.

Não pretendo aqui passar uma visão idealizada ou laudatória da experiência social feminina nas comunidades indígenas que visitei. Isso implicaria em simplificar e reduzir a sua complexidade cultural e histórica. Em outros lugares, escrevi sobre a vida das mulheres do alto rio Negro de uma perspectiva mais sistêmica e multifacetada. Porém, nesse cotejo, meu objetivo é somente contrastar duas formas culturais diversas de viver a maternidade e mostrar como essa diferença repercute na extensão e na qualidade dos cuidados oferecidos às crianças pequenas. Meu ponto é simples. Quando a maternidade devotada não se encaixa no tipo de existência culturalmente validada para a mulher, a criança é prejudicada. Ali onde ela é valorizada e representada positivamente, a criança é beneficiada.

Os dois exemplos apresentados são radicalmente contrastantes, e estão muito distantes no tempo e no espaço. Mas, e quanto a nós? Em que posição nos encontramos nessa escala? Nossa relação com a criança é sem dúvida mais amorosa e generosa do que a das francesas urbanas dos séculos XVII e XVIII. Não depositaríamos nossos bebês em carroças para serem levados para residir com uma mulher estranha durante anos a fio, distantes de nossos olhos e de nossa proteção. A simples menção a esse costume nos causa repulsa e horror. Mas a verdade é que, ao longo do nosso processo de educação e formação pessoal, não só deixamos de ser preparadas para a maternidade dedicada, como fomos enfática e ativamente encorajadas a priorizar expectativas que conflitam diretamente com ela. Já mostrei aqui no blog o quanto a nossa cultura individualista, hedonista e utilitarista desvaloriza e desestimula o devotamento materno. Crescemos expostas a uma propaganda cultural feminista que tenta nos convencer, a todo custo, que, a despeito do que realizamos em nossos lares, nossa existência só será digna de admiração se tivermos prestígio e poder na esfera pública. E tudo isso nos torna confusas e inaptas quando precisamos lidar com um fato fundamental: nossos filhos precisam da nossa presença e de nossa atenção.

Winnicott, na frase acima citada, estava, obviamente, privilegiando o ponto de vista do bebê. E é esse ponto de vista, precisamente, que a nossa cultura hegemônica nos convida o tempo todo a ignorar, ao fazer com que valorizemos acima de tudo os nossos projetos individuais, mesmo que eles nos levem a fazer vista grossa para as nossas obrigações morais com as nossas crianças. Há, obviamente, mulheres que não têm opção, e precisam entregar seus filhos aos cuidados de terceiros para garantir o bem-estar deles próprios. Não é desse tipo de circunstância de vida que eu falo. Falo de circunstâncias culturalmente criadas, que impactam a mulher em sua constituição subjetiva, e envolvem decisão e estabelecimento consciente de prioridades. É nesse sentido que precisamos resistir e nadar contra a corrente de nossas próprias representações culturais, assumindo o compromisso de sermos fortes e capazes de lidar com as eventuais frustrações que podem nos rondar quando, desafiando as circunstâncias, priorizamos o cuidado de nossos filhos.

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Imagem:

Pablo Picasso, Maternity, 1905.