As telas eletrônicas e a educação de seu filho

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O hábito de passar muitas horas diante de uma tela de aparelho eletrônico tem sido associado a uma série de problemas que afetam a saúde física e mental das crianças: sedentarismo, ansiedade, agitação excessiva, dificuldades de concentração, fraca interação social, alienação do mundo real. Porém, a despeito das exortações dos especialistas para que os pais resistam à tentação de entregar celulares e tablets nas mãos de crianças pequenas, é cada vez mais comum ver um bebê olhando para a tela de um celular.

É verdade que, diante da pequena tela, o bebê fica quietinho, fascinado, parece feliz… Mas podemos dizer o mesmo de um adolescente que passa o dia todo jogando videogame, não é mesmo? Experimente abrir a porta do quarto e perguntar a ele se quer parar de jogar para passear, estudar, ou fazer qualquer outra coisa. Capaz de nem escutar. Sabemos, porém, que esse não é um hábito saudável. Da mesma forma, a expressão de fascínio de um bebê diante de uma tela não indica que você está lhe dando algo realmente salutar e benéfico ao seu desenvolvimento. Indica somente que o que se passa na tela (ou a própria tela em si) está conseguindo atrair e reter a sua atenção, mais do que as outras coisas que acontecem ao seu redor. Muitas vezes, o tempo que o bebê passa olhando para o celular acaba sendo oportuno para uma mãe cansada ou atarefada. Mas é preciso muito cuidado: esses momentos de descanso ou de liberdade podem ter um preço alto demais.

Até completar três anos de idade, o bom desenvolvimento da criança depende fundamentalmente de ela estar imersa em sua realidade. Todos os dias de sua vida são repletos de experiências inéditas: ela aprende novas palavras, descobre novos objetos, avança ligeiramente na habilidade de realizar um novo movimento. A criança só necessita de oportunidades para se maravilhar com objetos e experiências reais: estímulo para os cinco sentidos, música de qualidade, contato com a natureza, oportunidade de ouvir a sua língua materna sendo bem falada, seja por meio de leitura em voz alta, seja por meio de conversas com os pais. O adulto deve administrar essas experiências, auxiliando a criança no desenvolvimento das habilidades de observação e atenção. “Olhe esta flor amarela, que linda. Espere, vamos olhar mais um pouco. Sinta como o perfume é bom e a pétala é macia.” Mesmo que ela não entenda todas as palavras, muita coisa será assimilada, não tenha dúvida.

Ora, o acesso cotidiano às telas eletrônicas pode ir na contramão dessas necessidades, de várias maneiras. Em primeiro lugar, porque em nada favorece o contato da criança com o mundo real, muito pelo contrário. Em segundo lugar, porque ele pode afetar os padrões de observação e concentração da criança, uma vez que não lhe exige o esforço de focalizar o objeto de seu interesse em meio a outros objetos, sons, e coisas que acontecem em torno, nem tampouco permite que ela observe o mundo no seu próprio ritmo. A tela já lhe fornece um enquadramento prévio e um ritmo pré-determinado. Por fim, dependendo do temperamento da criança, a concorrência das telas pode tornar a realidade do mundo menos atraente para ela. Para muitas crianças, as telas passam a ser o único objeto de curiosidade.

É preciso levar em conta também que, uma vez acostumado com os aparelhos eletrônicos, seu bebê um dia vai ser capaz de solicitá-los com veemência e insistência. Esse momento pode vir tão logo ele esteja apto a apontar ou pronunciar algumas palavras. A cada solicitação, você terá que avaliar a situação e decidir se deve ceder ou negar. E, a menos que a sua criança seja extremamente cordata e obediente por natureza, isso pode dar ocasião a conflitos. Então, por que começar tão cedo? Por que entregar à criança algo que, além de não ser necessário nem adequado, você vai ter que eventualmente lhe negar? Quando ela for mais crescidinha, você certamente não vai ficar satisfeito se perceber que seu tempo está sendo gasto mais diante das telas do que com outras coisas que você considere importantes. Então, me diga, por que criar esse hábito quando ela ainda não tem nem consciência de que as telas existem, nem capacidade para pedir?

A partir dos quatro, cinco anos de idade, a não ser que a família construa um estilo de vida radicalmente diferente do padrão hegemônico, as telas dificilmente poderão deixar de fazer parte da vida da criança. Elas estão em toda parte, inclusive em nossas casas, e – o que é ainda mais relevante – em nossas mãos. Mesmo que os pais tomem a decisão de jamais disponibilizá-las diretamente à criança, ela eventualmente terá acesso aos aparelhos eletrônicos em ocasiões sociais, como festas de aniversário, visitas à casa de coleguinhas ou parentes, etc. Mas isso não é, necessariamente, motivo de preocupação.

Os aparelhos eletrônicos podem, sim, fazer parte da vida das crianças maiores, como elementos de entretenimento, desde que haja uma supervisão competente e incansável por parte dos adultos. Não tenha medo das telas: o importante é que você estabeleça uma medida e a implemente por meio de regras firmes e claras. Agora, se o seu filho já está dependente das telas a ponto de não se interessar por outras atividades, você tem um problema e precisa enfrentá-lo o quanto antes.

Durante um período de alguns meses, você precisará empreender um firme trabalho de desconstrução do hábito. Procure manter a criança, o máximo de tempo possível, em atividades fora de casa, em lugares onde ela não terá acesso aos aparelhos eletrônicos. Comece devagar, aumentando gradativamente as horas de abstinência. Se ela costuma correr para o computador, o tablet ou celular assim que entra em casa, chegue um pouco mais tarde, passe em algum lugar para fazer um lanche, mude ligeiramente a rotina. Ao mesmo tempo, converse com a criança sobre a necessidade de diminuir o tempo diante das telas. Diga a verdade. Explique que os aparelhos eletrônicos só serão aceitáveis se não ocuparem tempo demais em sua vida. Em casa, ofereça alternativas. Proponha brincadeiras e jogos, assista a um filme junto com ela. Você precisará, em suma, fazer concorrência às telas, mas faça isso com inteligência e serenidade, sem medo e sem ansiedade.

Além de regular o tempo de acesso das crianças aos aparelhos eletrônicos, é muito importante, também, prestar atenção ao conteúdo que elas estão assimilando. O que está se passando na tela? Se o seu filho joga, quais são os jogos? Você os considera totalmente adequados? Se ele assiste a séries e animações, qual é a origem e o conteúdo que está sendo oferecido? Se ele assina canais de youtubers, como é o conteúdo apresentado e o linguajar utilizado? Quais são os interesses que esses influenciadores despertam em seu filho? Fugir dessas considerações significa protelar o enfrentamento de um problema real e incontornável. A tarefa de supervisionar, filtrar, regular e, se necessário, vetar o acesso de sua criança a conteúdos inadequados é inteiramente sua. Sem a sua firme ingerência, pessoas desconhecidas, e que em sua maioria veem as crianças apenas como consumidoras em potencial, estarão livres para fornecer cotidianamente, e de maneira privilegiada, o alimento da imaginação de seu filho.

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Donald Zolan (1937 – 2009)

O Estudo do Artista

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O melhor caminho para auxiliar a criança no desenvolvimento da sensibilidade estética e dos critérios que levam à apreciação bem informada da arte, é colocá-la desde cedo em contato com obras de artistas consagrados pela tradição. Isso vale tanto para as artes plásticas como para a música. Assim pensava Charlotte Mason, educadora britânica do século XIX que criou um currículo escolar muito particular, que até hoje é utilizado em escolas do hemisfério norte e por famílias que praticam a educação domiciliar. No Brasil, é crescente o número de famílias que ensinam seus filhos em casa pelo método de Charlotte Mason. Se você quiser saber mais sobre o trabalho dessa notável educadora,  clique aqui nesse link.

Mas hoje quero falar aqui, especificamente, sobre uma atividade proposta por C. Mason para o estudo da arte. Trata-se do Estudo do Artista, que consiste em apresentar à criança, durante três meses, de seis a oito reproduções de obras de um mesmo pintor, uma de cada vez. Funciona assim. Escolha um lugar de destaque, e a cada 15 dias, disponha ali uma das imagens. Tendo sempre como medida o interesse manifestado pela criança, aos poucos, você pode explorar alguns detalhes da obra, fornecer informações sobre o artista e o contexto do quadro. O importante é não atropelar a sua curiosidade. O objetivo principal é que ela conheça a obra, veja e reveja muitas vezes, tenha a oportunidade de concentrar a sua atenção e apreciá-las de maneira livre e espontânea. O estilo do artista deixará uma impressão profunda e duradoura em sua imaginação.

A escolha do artista é livre, e fica a seu critério. Uma dica importante: não ceda à tentação de apresentar todas as obras de uma só vez. E – agora falando por mim mesma e não por Charlotte Mason – organize a atividade de um modo que, ao final do trimestre, a criança possa ver todas as obras em conjunto. Apresentei desse modo Leonardo da Vinci ao meu filho, que está prestes a completar 6 anos, e não poderia ter ficado mais satisfeita com o resultado. Lemos o “Da Vinci” da Coleção Crianças Famosas, e assistimos juntos alguns vídeos que mostravam a obra do artista em museus pelo mundo. O próximo trimestre ele vai conhecer Rafael Sânzio, e no outro Sandro Botticelli, pois, no nosso caso, o critério será cronológico. Esse ano será dedicado aos mestres do Renascimento.

Eu recomendo o Estudo do Artista, nesses moldes, para professores e pais. Trata-se de uma atividade muito simples, que pode envolver crianças de várias idades de uma só vez. Basta-nos conseguir as seis reproduções e coletar informações que nos permitam responder as perguntas que vierem. Essa parte – a da pesquisa – é aquela que nos toca diretamente: o Estudo do Artista também nos dá uma ótima oportunidade para complementarmos a nossa própria educação.

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Leonardo Da Vinci, “Dama com Arminho” (1489-1490)

 

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A iniciação literária da criança

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A imaturidade linguística e cognitiva da criança pequena não é justificativa para que nos descuidemos da qualidade dos livros que lhe apresentamos. Uma boa educação literária requer, desde o início, atenção à ilustração, à correção do texto, ao vigor da narrativa, e à adequação à faixa etária.

Até os três anos de idade, aproximadamente, a ilustração exerce um papel muito importante como fator de atração. Sua presença deve ser marcante, ocupando toda ou quase toda a página. É importante também que ela represente os objetos do mundo sem distorções exageradas de forma ou proporção. Por isso, devem ser evitadas as ilustrações em estilo psicodélico, cubista, ou excessivamente esquemático. Elas confundem e cansam as crianças pequenas, estimulando-as com formas difíceis de compreender e muitas vezes destituídas de qualquer beleza. Ofereça apenas ilustrações coerentes e belas, relativamente próximas do objeto real.

Um dos principais objetivos da educação literária é contribuir para a formação do imaginário infantil. Se a criança nunca viu um galo e queremos que ela conheça esse animal, ampliando assim o seu repertório de imagens da natureza, de que vale mostrar-lhe um desenho que não representa bem um galo, ou, ainda, como ocorre frequentemente hoje em dia, que distorce e enfeia (propositalmente) a imagem do galo real?

Quanto ao texto, deve ser claro e correto, sem gírias ou palavreado vulgar. Tenha sempre em mente o seguinte. Se o seu filho se interessar pelo livro, ao final, muito provavelmente, pedirá que você o releia, até o ponto de memorizar o conteúdo. As crianças pequenas gostam de desfrutar a mesma história duas, três, dezenas, centenas de vezes. A repetição permite que elas absorvam a narrativa em seu próprio ritmo, dando-lhes tempo, também, para elaborar os sentimentos despertados durante a leitura. Além disso, elas apreciam a expectativa de rever as imagens já conhecidas e de antecipar mentalmente o que será dito em seguida. Essa experiência de previsibilidade auxilia a criança na construção do seu senso de ordem.

A seguir, apresento uma periodização bem simples, que deve ser tomada como um parâmetro e não como uma camisa de força. Você conhece seu filho mais do que ninguém e saberá o momento apropriado para passar de uma etapa a outra.

Dos seis aos dezoito meses
Quando, por volta dos seis meses de idade, o bebê já começa a enxergar praticamente como um adulto, as belas e coloridas ilustrações de um livro podem atraí-lo a ponto de prender seu interesse por alguns minutos. Embora as histórias sejam sempre bem-vindas, nessa fase são particularmente interessantes livros que nomeiam objetos do cotidiano, animais, plantas, lugares, etc, ou seja, aqueles voltados para a ampliação do vocabulário. Geralmente, eles trazem apenas o nome do objeto ilustrado ou repetem o mesmo tipo de frase, a cada página fazendo referência a novos objetos. Por exemplo, “veja a árvore”, “veja a nuvem”, “veja a estrela”. Mesmo que ainda não fale, aos doze meses a criança já é capaz de compreender razoavelmente a língua materna, estando apta a aprender palavras novas a cada dia. Você pode enriquecer a leitura com comentários sobre a beleza das imagens, sobre a presença dos objetos retratados em situações cotidianas, etc.

Nessa faixa etária, a biblioteca não precisa ser muito extensa, pois, como eu já disse, o mesmo livro será lido inúmeras vezes. É importante lembrar também que o bebê ainda não possui recursos psíquicos para lidar com uma variedade grande de estímulos, e pode ficar agitado ou cansado. Por isso os livros devem ser apresentados – lidos e relidos – um de cada vez.

Pode ser que o seu filho demonstre mais interesse por alguns em detrimento de outros. Ótimo! Nas próximas aquisições, você pode usar as preferências dele como critério de escolha.

Dos dezoito meses aos três anos
A partir dos dezoito meses, a criança já está preparada para concentrar a atenção em histórias simples, curtas, sem grandes rodeios, com princípio, meio e fim. Ainda é bom que o texto seja estruturado pela repetição, embora deva ser mais longo do que na fase anterior. É muito interessante também que ele seja ligeiramente musical, no sentido de possuir um ritmo sonoro previsível a cada leitura. Mas, aos poucos, completados os dois anos de idade, já devem ser introduzidas algumas histórias mais extensas e lineares, preparando a criança para a próxima etapa de sua educação literária, em que a narrativa ganhará cada vez mais relevância.

Os personagens da moda, que a criança eventualmente já aprecie, podem funcionar como atrativos para aproximá-la dos livros. Mas o objetivo da literatura é ampliar o universo linguístico e existencial da criança, formando uma rica e abrangente coleção de imagens mentais.  Por isso, a popularidade do personagem não deve ser critério de escolha. Em geral, os livros que trazem personagens de filmes e desenhos animados são produzidos sem atenção genuína às necessidades do desenvolvimento infantil. Eles possuem um caráter mais comercial, e deixam muito a desejar em termos de qualidade literária.

Evite também os livros que têm por objetivo imediato estimular algum tipo de comportamento rotineiro. Por exemplo, aqueles que ensinam a usar o penico, a escovar os dentes, e outras coisas do gênero. Assuma, corajosa e pessoalmente, a tarefa de criar bons hábitos em seu filho. Esse papel é seu. Deixe a literatura encantar o dia-a-dia, alimentar o imaginário e aumentar o repertório moral e cultural da criança.

Por fim, além de apresentar ilustração e texto de qualidade, um bom livro para a primeira infância deve respeitar a criança como um ser vulnerável e em formação, que precisa acreditar na existência da beleza, da justiça e da ordem. Estamos aqui falando de crianças pequenas, e não há nada mais importante nessa fase do que fazê-las se sentirem seguras. Por isso, por mais que a narrativa possa conter surpresas e gerar expectativas, no final é importante que tudo esteja em seu devido lugar.

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Jessie Willcox Smith (1863-1935), “My First Picture Book”.

Quais são as histórias clássicas que seu filho precisa conhecer?

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A literatura clássica para crianças é muito vasta. Mas, por volta dos cinco anos de idade, ele já pode ser apresentado a três gêneros incontornáveis: os contos de fadas, as fábulas e a obra de Monteiro Lobato. São histórias que, a um só tempo, maravilham as crianças, enriquecem o seu imaginário, e conduzem-nas suavemente na direção de valores que nos são caros, como a generosidade, a justiça e a beleza.

Os Contos de Fadas

Os Contos de Fadas têm origem no folclore medieval europeu. Ambientados em castelos, florestas ou pequenas aldeias, são povoados por fadas boas e bruxas más, aristocratas e plebeus, animais falantes e outros seres fantásticos que se relacionam com os humanos e contribuem, por meio de estratagemas ou encantamentos, para transformar o seu destino.

As narrativas orais dos camponeses medievais começaram a ser transpostas para a forma escrita a partir do século XII, mas foi com autores modernos como Charles Perrault (século XVII) e os irmãos Grimm (séculos XVIII/XIX) que elas adquiriram a feição que conhecemos hoje. As histórias originais eram mais violentas e trágicas do que as que contamos às nossas crianças. No processo de fixação dos contos na forma escrita, certos aspectos dos enredos e dos personagens foram sendo suavizados para se adaptar à sensibilidade urbana do leitor moderno.

Contudo, as histórias continuam muito atuais, pois tratam de temas centrais da experiência humana, como a angustiosa transição da infância para a vida adulta, o ciúme entre irmãos, a inveja da beleza, da riqueza e do sucesso, etc. Na maioria delas, o núcleo da narrativa é um conflito existencial: o herói ou a heroína buscam algum tipo de realização pessoal. No caminho, eles encontram obstáculos terríveis que precisam transpor.

Os contos de fadas cumprem ainda a importante função de acalmar a ansiedade infantil em relação à existência do perigo e do mal no mundo. O Bem e o Mal são apresentados de forma dicotômica, absoluta e explícita, permitindo às crianças trabalhar sua angústia de forma construtiva e otimista – porque nessas histórias, o Bem quase sempre vence. Os contos permitem, assim, à criança, organizar suas percepções e sentimentos, ao mesmo tempo em que ela é apresentada a arquétipos importantes da tradição ocidental.

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“Meu Primeiro Livro de Contos de Fadas”,       Mary Hoffman, Cia das Letrinhas.

As Fábulas

As fábulas são portadoras de uma tradição ainda mais longa do que a dos contos de fadas. Com elas, recuamos até o tempo da Grécia Antiga.

Trata-se de pequenas composições literárias protagonizadas na maioria dos casos por animais, e cujo desfecho contém um ensinamento sobre a vida, o comportamento humano e a realidade do mundo. Quem não conhece a história da cigarra que passou o verão cantando e no inverno teve que pedir abrigo à formiga trabalhadeira e avarenta, que havia juntado provisões para o inverno e se recusava a dar? Ou a da lebre convencida que, achando que a corrida estava ganha, foi tirar um cochilo e, quando acordou, havia sido ultrapassada pela lenta, porém obstinada, tartaruga?

Pois bem, também são histórias de origem popular atribuídas ao grego Esopo, que teria vivido há mais de 2500 anos atrás. Elas eram tão conhecidas e valorizadas na Grécia, que sua função educativa chegou a ser citada por Platão e Aristóteles. E o mais incrível é que, assim como ocorre com os contos de fadas, o seu conteúdo continua absolutamente atual.

As fábulas de Esopo teriam sido registradas em forma escrita, na língua latina, por Fedro, escravo liberto do imperador romano Augisto, no primeiro século da Era Cristã. Posteriormente, no século XVII, as fábulas de Esopo foram recontadas em verso pelo francês Jean de La Fontaine.

Embora sejam em sua maioria animais, os personagens dessas histórias apresentam qualidades e defeitos tipicamente humanos. Por isso, La Fontaine dizia que a fábula “é uma pintura em que cada um de nós pode encontrar seu próprio retrato.” Sua leitura enriquece o imaginário e a compreensão da criança sobre as circunstâncias de sua vida, sobre ela mesma e sobre as pessoas que a cercam.

Há muitas adaptações de Esopo e La Fontaine no mercado brasileiro de literatura infantil. Mas as fábulas requerem um trabalho maior de mediação da parte do adulto. Como elas envolvem ensinamentos bem específicos, é preciso muitas vezes explicitar a moral da história para a criança. E há também as fábulas escritas por autores modernos, de mais fácil assimilação, como Os Três Porquinhos, de Joseph Jacobs, e O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen.

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A literatura infantil de Monteiro Lobato

Depois de ter algum contato com esses dois gêneros literários, as crianças já podem ser apresentadas à obra de Monteiro Lobato (1882-1948). Trata-se de um hiper-clássico brasileiro cujas histórias arrebatam a atenção dos pequenos há várias décadas. O livro Reinações de Narizinho, que foi publicado em 1931, serve de marco inicial para a série “Sítio do Pica-Pau Amarelo“, que contém 23 volumes. As histórias do “Sítio” agregam elementos do nosso próprio folclore ao imaginário fantástico de animais falantes e fadas madrinhas. Ou seja, elas enriquecem a imaginação infantil com um toque genial de brasilidade.

Monteiro Lobato é interessante e incontornável por si só, mas além da qualidade intrínseca da obra, sua leitura estimula as crianças a empreenderem outras aventuras literárias mais tarde. Por exemplo, Peter Pan e Dom Quixote, que intitulam volumes do Sítio, podem posteriormente ser visitados em boas adaptações dos originais para o público infantil. O mesmo podemos dizer de O Minotauro e Os Doze Trabalhos de Hércules, que podem motivar a introdução da mitologia grega no repertório de clássicos da criança.

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Com essa lista de leituras tão divertidas quanto indispensáveis, seu filho vai desenvolver o gosto pela boa literatura e adquirir uma bagagem cultural que o acompanhará pelo resto da vida.

Em geral, as crianças estão prontas para o contato com essa rica literatura, na versão “original”, a partir dos cinco anos de idade, aproximadamente. Mas cada caso é um caso. De todo modo, completados os três anos, elas já podem ser apresentadas a versões simplificadas e condensadas das fábulas e dos contos de fadas.

Por fim, sugiro que você reserve um horário para ler diariamente para o seu filho. Que tal à noite, antes de dormir, para que os seus sonhos sejam alimentados pelas imagens maravilhosas que ele vai absorver? Esses momentos de atenção e intimidade ficarão guardados para sempre em sua memória afetiva

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Imagem do topo:

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), “Portrait de Jean et Geneviève Caillebotte“. 

Por que as crianças precisam ouvir histórias clássicas?

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Ter acesso à boa literatura desde a mais tenra idade é fundamental para a estruturação do pensamento, a formação do imaginário e o desenvolvimento da linguagem compreensiva e expressiva. Isso todo mundo já sabe. Pouco se fala, porém, de um segundo benefício da literatura para a formação pessoal: a educação dos sentimentos.

Bons livros nos transportam para outros tempos e lugares. Eles nos dão oportunidade de vivenciar outras vidas e outras subjetividades. Conhecemos formas de agir e sentir que muitas vezes nem suspeitávamos, expandindo a nossa imaginação afetiva e os nossos horizontes existenciais. Isso nos torna mais autoconscientes e mais capazes de compreender os outros. Em suma, a literatura pode nos tornar pessoas melhores, mais bem preparadas para os relacionamentos da vida.

As crianças adoram ouvir histórias, pois a sua capacidade de se deixar envolver e levar por outras possibilidades existenciais é praticamente ilimitada. Nessa fase de extrema abertura imaginativa, é muito importante que os adultos lhes contem histórias que possam, ao mesmo tempo, dar asas à sua imaginação e ampliar o seu conhecimento do mundo.

Mas como selecionar a boa literatura dentre a enorme quantidade de livros publicados a cada dia, grande parte sem nenhuma qualidade? Em outras palavras: o que devemos ler para as nossas crianças?

A boa literatura infantil não se resume, obviamente, às histórias que já se tornaram clássicas. Há ótimos títulos contemporâneos no mercado editorial. Mas a melhor estratégia é garantir que seu filho tenha contato com os clássicos já consagrados, enquanto, paralelamente, você seleciona dentre os autores contemporâneos aqueles que merecem ocupar o seu tempo e o seu imaginário.

Por que privilegiar os clássicos? Primeiro porque as obras de literatura clássica resistiram à ação das mudanças sociais e atravessaram gerações mantendo o seu poder de atração, seja por milênios, séculos ou décadas. A literatura clássica é aquela que não sai de moda. E ela permanece porque, ao captar, fixar e revelar algo de essencial acerca da natureza humana, transcende a sua própria época.

O segundo motivo que torna a literatura clássica incontornável para uma boa educação é que ela transmite às novas gerações o repertório cultural preservado pela tradição. Ali está condensado todo um esforço de observação e compreensão da vida humana por parte de pessoas de rara sensibilidade e capacidade de expressão. Por isso, como disse o escritor italiano Ítalo Calvino, “um clássico constitui uma riqueza para quem o lê.”

O mundo da literatura clássica infantil é muito vasto, mas há três gêneros incontornáveis, que podem fazer parte da experiência literária das crianças a partir dos 3 anos de idade: as fábulas, os contos de fadas, e a obra de Monteiro Lobato. Não perca a próxima postagem. Vou falar sobre cada um desses gêneros de literatura infantil e trazer uma série de dicas de como tornar mais produtiva a leitura de cada um deles.

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Mas, antes de finalizar, quero falar uma última coisa. Quando tomamos a decisão de nos envolver pessoalmente com a educação literária de nossos filhos, assumindo-a como uma tarefa prioritária, muitas vezes nos deparamos com lacunas importantes em nossa própria formação. Diante da constatação de que não temos conhecimento suficiente para orientá-los adequadamente, há duas atitudes possíveis.

A primeira, e infelizmente a mais frequente, é responsabilizar nossos pais e professores, e em seguida cruzar os braços, como se o problema não nos pertencesse. Isso obviamente não leva ninguém a lugar nenhum. A segunda atitude, mais honesta e sábia, é assumir pessoalmente a tarefa de complementar a nossa própria educação.
Se você acha que a sua educação literária foi deficiente, não se sinta só. Este é o caso de todos, ou quase todos, os pais e mães brasileiros que começam a atentar para a necessidade de guiar seus filhos pelo universo dos livros. Deixo aqui, para você, um link que leva a uma lista de 100 obras de literatura clássica mundial (clique aqui). É só decidir por onde você prefere começar.
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Jessie Willcox Smith (1863-1935) , “A Rainy Day”.

A defesa do imaginário

Já falei aqui no blog do quanto é importante que os pais realizem um trabalho de cultivo do imaginário de seus filhos, propiciando o contato das crianças com a natureza, a arte e a literatura. Agora quero falar sobre outro tipo de cuidado, complementar e tão importante quanto o de cultivo: o trabalho de defesa. Como diz o prof. Francisco Escorsim, defender o imaginário infantil nunca foi tão necessário e urgente.

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Uma fração significativa do tempo das crianças urbanas de todas as camadas sociais é passada diante da televisão ou dos aparelhos eletrônicos digitais (computadores, smartphones, tablets, etc). Sem nenhuma proteção, e por horas a fio, elas absorvem imagens de qualidade ética e estética muito discutível, pelo menos em boa parte dos casos. Ora, não é novidade para ninguém que o objetivo da programação dessas mídias é precisamente o de mantê-las focadas na tela pelo maior tempo possível. A interferência dos pais se torna, assim, absolutamente necessária.

Porém, antes de falar mais especificamente das mídias eletrônicas, é preciso lembrar duas coisas. A primeira é que defender o imaginário de seu filho não significa controlar inteiramente os seus caminhos. Em alguma medida, a imaginação de qualquer criança será inevitavelmente afetada pela cultura de sua própria geração. Para o bem ou para o mal.

O segundo ponto importante é que cada criança, como pessoa única e singular, reage individualmente aos estímulos que recebe do mundo. Sendo assim, a relação que uma criança estabelece com as mídias eletrônicas não depende somente do desempenho educativo de seus pais. Porém, se os pais não estiverem dispostos a cuidar desse assunto e não realizarem um bom trabalho de mediação, ela ficará mais exposta à influência daqueles que querem torná-la um consumidor dependente e acrítico. Ou seja, é precisamente sobre a medida dessa influência externa que podemos e devemos atuar com nosso trabalho de defesa.

A televisão

Permitir que crianças pequenas assistam livremente à programação televisiva voltada para o público adulto é uma espécie de abandono moral. Porém, mesmo nos casos em que a criança assiste somente à programação infantil, os pais precisam estar atentos à quantidade de tempo passado diante da tela e à adequação dos programas assistidos.

Quanto ao conteúdo dos programas, é importante observar, de um lado, os valores transmitidos; de outro, a qualidade do texto, da linguagem, das imagens, e da trilha sonora, assim como o ajuste de todos esses elementos à faixa etária da criança. Há obviamente canais melhores e piores. E embora possamos encontrar alguns programas e desenhos em que esses elementos são reunidos com talento e sensibilidade às necessidades da infância, infelizmente isso não é verdade para a maioria.

Além da questão do conteúdo, há também o problema do ritmo e da sequência de apresentação dos programas. Geralmente, eles são encadeados de maneira caótica, intercalados com comerciais de produtos e chamadas para outros programas. Desse modo, num curto espaço de tempo, a criança assistirá a vários programas e desenhos diferentes, além de comerciais de produtos e vinhetas que remetem a outros programas. Isso contribui mais para a criação de um estado de confusão mental do que para o desenvolvimento do senso de ordem e da capacidade de conferir sentido ao mundo.

Mas, como fazer essa mediação? Em primeiro lugar, escolhendo pessoalmente os programas a que seu filho vai assistir. Você pode selecionar previamente o que considera apropriado nas ferramentas de busca da TV a cabo. Outra boa alternativa à programação oficial é adquirir DVDs ou BRDs com os desenhos, animações e filmes preferidos da criança, e que você considere adequados. Desse modo, ainda evita sua exposição à propaganda inconveniente.

Em resumo, você decide o que seu filho vai ver, seleciona o material e estabelece as regras de disponibilização. Essa estratégia também possibilita que a própria criança dite o ritmo em que os programas serão assistidos e assimilados. Ela pode ver o mesmo programa quantas vezes quiser, concentrando-se e apreendendo melhor os detalhes da história.

Até os 3 ou 4 anos de idade, esse controle estrito é perfeitamente viável, dependendo somente de os pais estarem dispostos a dedicar uma parte de seu tempo a essa tarefa. Passados os primeiros anos, porém, o trabalho de mediação pode se tornar delicado. Estando mais permeável às influências externas (principalmente dos amiguinhos da escola), a criança talvez comece a manifestar o desejo de assistir a programas que não atendam os critérios de qualidade pré-estabelecidos pelos pais. Nesse caso, é preciso avaliar o teor da concessão, e decidir se as regras podem ou não ser flexibilizadas.

Os aparelhos eletrônicos digitais

Em relação à internet e às redes sociais, a única estratégia segura é jamais permitir que as crianças naveguem sem a supervisão de um adulto, pois elas não têm maturidade para se defender das imagens a que ficam ali eventualmente expostas. Sobre os jogos eletrônicos, quanto mais tempo você puder adiar o momento de acesso regular, tanto melhor. Mas seja qual for a sua decisão a respeito, a única forma de lidar com a presença deles na rotina da criança é estabelecer regras claras acerca do seu uso: que jogos seu filho pode jogar, quantas vezes por semana, e quanto tempo por dia.

Diante de uma tela de celular, tablet, ou computador, a criança absorve um imenso e caótico conjunto de imagens fragmentadas, esteticamente pobres e apresentadas com uma velocidade estonteante. Imagens que, ao invés de ampliar os seus horizontes mentais, acabam por turvá-los. Durante esse tempo, ela perde o contato com a realidade, alienando-se de tudo o que se passa ao redor. Além disso, os jogos eletrônicos deixam a criança agitada e cansada, e tiram a qualidade do sono. Por isso, não basta selecioná-los. É preciso também limitar o tempo que lhes será dedicado. Quando os pais não exercem esse tipo de controle, as crianças tendem a exagerar na dose. E deixam de realizar outras atividades importantes para o seu desenvolvimento e para a formação de um imaginário rico e abrangente.

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Imagem: Steven Adams, Via Imagina

Fonte: ideaplex.com.br

Educação para a arte

Hoje quero deixar para você uma dica preciosa que me chegou recentemente pelo blog Encontrando Alegria, da Camila Abadie, que sigo há algum tempo. Essa dica complementa e exemplifica a minha última postagem sobre a importância do contato com a arte na formação do imaginário infantil.

Trata-se do ebook What Do You See: A Child’s First Introduction to Art, da autora americana Laurie Bluedorn. A faixa etária indicada é de 4 a 12 anos.

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What do You See” é uma obra em três volumes, que visa despertar o interesse das crianças pela pintura e transmitir três princípios introdutórios ao estudo da arte. O primeiro volume tem por objetivo levar a criança a observar e identificar o centro de interesse da obra, ou seja, a parte que o artista quer que atraia a atenção do expectador em primeiro plano. O segundo volume explora o tema da cor, focalizando a presença das cores primárias. E o terceiro trata especificamente da fonte de luz. Cada volume apresenta dez reproduções de obras clássicas, seguidas por um guia de questões.

Quem já visitou museus na Europa provavelmente pôde ver grupos de crianças em idade escolar, orientadas por um professor, observando demoradamente uma pintura. Dependendo da faixa etária, elas fazem anotações. Em geral, para as crianças pequenas, as observações do professor giram em torno dos três princípios que o livro de Laurie Bluedorn explora: “O que vocês estão vendo? O que chama atenção em primeiro lugar? Que cores predominam na tela? De onde vem a luz que ilumina a cena?”

No Brasil, infelizmente, a grande maioria das crianças não recebe esse treinamento do olhar.  São poucas as escolas que possuem a preocupação de desenvolver em seus alunos a capacidade de apreciar formalmente uma obra de arte e cujos professores estão preparados para fazer esse tipo de trabalho. Portanto, os pais precisam se preparar para assumir essa tarefa.

Começar por What Do You See pode ser bem interessante. Além de ser um guia para a iniciação à educação artística e uma fonte para a ampliação do imaginário infantil, as atividades propostas no ebook rendem momentos agradáveis de intimidade entre pais e filhos. A maior parte das pinturas retratam cenas do cotidiano infantil, o que permite que as crianças se projetem mais facilmente nas imagens. Se, além de trabalhar as questões sugeridas, você estimular seu filho a falar livremente sobre o que está vendo, deixando-o à vontade para comunicar suas impressões e expressar suas emoções, a cada quadro terá oportunidade de conhecê-lo um pouco mais.

Os três volumes estão disponíveis na Amazon por menos de 3 dólares cada. Mas certifique-se de que você vai poder visualizar as imagens a cores e em tela grande.

Referências:

What do You See: A Child’s First Introduction to Art (3 vols.)

Laurie Bluedorn

Trivium Pursuit ed.

O cultivo do imaginário

Se você tem um filho pequeno, certamente já observou que ele não precisa de nenhuma ajuda ou incentivo para se entregar ao ato de imaginar. Isso porque, até os sete anos de idade, aproximadamente, o potencial infantil para a fantasia e a brincadeira é naturalmente ilimitado. Nessa fase de extrema abertura imaginativa, a capacidade da criança de reter, memorizar e absorver criativamente as imagens que capta do ambiente atinge o seu rendimento máximo.

O conjunto dessas imagens, que chegam à criança por meio dos cinco sentidos, compõe aquilo que se costuma denominar de “imaginário infantil”. E é a partir desse material que a imaginação de seu filho trabalha na hora das brincadeiras.

Os atos imaginativos da criança serão tanto mais ricos e complexos quanto maior for a qualidade das imagens que ela puder absorver e guardar na memória. Mas o ponto importante é que, embora o potencial das crianças pequenas para a fantasia seja por natureza ilimitado, elas não possuem recursos para buscar sozinhas um repertório de imagens que esteja fora de seu ambiente imediato. E é aqui, precisamente, que começa a responsabilidade dos pais: apresentar o mundo para os filhos de modo que eles possam formar um imaginário rico e abrangente.

Mas por que é tão importante formar um imaginário rico e abrangente durante a infância? Por dois motivos. O primeiro diz respeito à própria vivência infantil. Brincar é muito prazeroso e possibilita à criança explorar a sua subjetividade das mais variadas formas. Um imaginário rico e abrangente propicia uma experiência mais divertida com a imaginação.

O segundo motivo diz respeito à repercussão da experiência imaginativa infantil na fase adulta. Dela depende, em ampla medida, nossa forma de estar no mundo, ou seja, o modo como sentimos e vivemos a nossa existência. A sensibilidade e a inteligência estão estreitamente atreladas à imaginação. E embora o nosso imaginário possa se expandir e se qualificar ao longo de toda a vida, é na infância que se forma a base.

Nós, adultos, reagimos às situações que a vida nos apresenta de acordo com os recursos imaginativos de que dispomos. Um adulto pouco imaginativo tem dificuldade para interpretar textos, projetar cenários, avaliar possibilidades, tomar decisões que requeiram algum tipo de reflexão. A falta de imaginação, ou uma imaginação muito estreita, também limita a compreensão e a expressão dos sentimentos, dos nossos e dos alheios. Por tudo isso, podemos dizer que uma imaginação rica e treinada para altos voos sempre pode nos levar mais longe. Ao passo que uma imaginação pobre e pouco exercitada não nos leva muito além do quintal da nossa casa.

Mas quando falo de um imaginário rico e abrangente, não me refiro somente à quantidade e à variedade das imagens a que a criança terá acesso. É preciso prestar atenção à sua qualidade ética e estética. Devemos apresentar à criança imagens belas e virtuosas. Pois o imaginário não está relacionado somente à inteligência e à sensibilidade. Ele também participa diretamente da formação do gosto e do caráter.

Nesse ponto, já deve estar claro qual é o seu papel nessa história.

Imagens da natureza

Em primeiro lugar, mostre a natureza ao seu filho, pois não existe melhor manancial de imagens belas e edificantes. As imagens da natureza nos fazem lembrar o tempo todo o privilégio de ter tido a chance de nascer e de estar nesse mundo.

O fato da maioria das crianças urbanas viverem em apartamentos é certamente um fator limitante do desenvolvimento da capacidade contemplativa. Aliás, o simples fato de morar em uma grande cidade pode significar a impossibilidade de sequer observar um céu estrelado. Mais sortudas, nesse sentido, são as crianças que acordam olhando para uma paisagem admirável. Mas essa limitação das crianças urbanas é passível de ser relativamente contornada por uma atitude propositiva dos pais.

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Dê a seu filho oportunidade de observar vastos horizontes e contemplar belezas naturais impactantes: ver o pôr-do-sol, a Lua despontando no céu, a massa compacta e imponente de montanhas que compõem uma serra, as ondas do mar quebrando na areia. Ao levá-lo para passear, mostre a ele os detalhes da paisagem e deixe que se divirta coletando pequenas coisas como folhas e pedras de tipos e formatos variados. Estimule-o a experimentar o ambiente usando todos os sentidos possíveis. Passar a mão no casco de uma tartaruga, ouvir o canto dos pássaros, provar uma fruta no pé, essas pequenas experiências contribuem muito para a construção de um conhecimento do mundo mais profundo e pessoal.

As crianças possuem uma capacidade natural de se maravilhar com qualquer coisa, por mais simples e diminuta que seja. Quando têm a chance de um contato íntimo com a natureza, elas aprendem a identificar e apreciar coisas belas, ao mesmo tempo em que aumentam a sua coleção de experiências encantadoras.

Imagens da cultura

Mas as imagens maravilhosas não estão só na natureza. Elas também habitam o mundo da cultura, esse patrimônio construído por gerações e gerações de homens e mulheres inspirados e talentosos que viveram (e vivem) nos quatro cantos da Terra. Para a formação da criança enquanto pessoa imaginativa e autoconsciente, é fundamental que a experiência humana de outras épocas e lugares possa reverberar em sua imaginação. Educar uma criança consiste precisamente em levá-la além dos limites de seu espaço/tempo imediato, ao qual ela já estará naturalmente integrada. E isso só se torna possível graças às imagens contidas nas obras artísticas e literárias.

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O acesso à arte e à literatura de qualidade amplia os horizontes existenciais da criança, pois a coloca em contato com uma vasta gama de situações de vida e modelos de comportamento nos quais ela pode se espelhar e se projetar rumo ao futuro. Ao mesmo tempo, favorece o desenvolvimento de uma sensibilidade mais fina para tudo o que diz respeito às relações humanas. Por isso, apresentar ao seu filho a boa literatura, principalmente as obras clássicas, é o caminho mais seguro e consistente para uma educação que vise à autoconsciência e à liberdade.

Visitar os museus da cidade, assistir boas peças de teatro infantil e ouvir música de qualidade também são atividades que contribuem significativamente para o cultivo do imaginário. Pense nisso ao planejar os passeios de sua família. Todo mundo vai sair ganhando.

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Se você se interessou pelo tema da formação do imaginário e quer aprofundar os seus conhecimentos, acompanhe o trabalho do Prof. Francisco Escorsim, que se dedica à educação da imaginação de jovens e adultos. Acesse a sua página de trabalho no Facebook  e informe-se sobre a programação de palestras e cursos.

O trabalho do Prof. Escorsim tem sido uma fonte de inspiração importante para minhas reflexões sobre a imaginação infantil.

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Imagem:

Edmund Blair Leighton, The Accolade, 1901.