Dois mitos sobre o desenvolvimento da autonomia na criança

  1. Trent Gudmundsen - Tutt'Art@ (4)

É bem sabido que, ao longo da infância, as crianças precisam ter oportunidade de vivenciar situações que lhes permitam lidar com o sentimento de frustração. Porém, do mesmo modo que não é conveniente produzir um ambiente artificial que proteja nossos filhos de qualquer incômodo ou aborrecimento, também não devemos criar artifícios frustrantes apenas com o objetivo de educá-los. As próprias circunstâncias da vida, das quais somos na maioria das vezes os representantes ou porta-vozes, vão se encarregar de colocar limites à ânsia infantil de satisfação plena.

Nesse artigo, quero falar sobre dois mitos que podem levar pais naturalmente amorosos e atenciosos a lidar de maneira inadequada com as necessidades emocionais de seus filhos. É muito difundida, por exemplo, a ideia de que “colo demais estraga a criança.” Isso não é verdade. Colo não “estraga” a criança, se entendermos “estragar” como “afetar negativamente o seu desenvolvimento rumo à maturidade emocional”. Nesse sentido, é justamente a falta de colo que se torna um problema. A criança procura o colo quando precisa de consolo, aconchego ou proteção. Negar-lhe isso é falta de cuidado e empatia.

A criança carente de atenção e cuidados precisa gastar muita energia tateando às cegas o caminho da auto estruturação emocional, ao passo que aquela que confia no amor dos pais fica liberada para expandir as capacidades que lhe permitirão conquistar a autonomia afetiva. Agora, se “estragar” significa simplesmente que a criança vai se acostumar com o colo e vai solicitá-lo sempre que precisar ou desejar, isso é a mais pura verdade. E é muito bom que seja assim. Nada melhor do que conhecer o mundo e se familiarizar com ele do alto dos ombros das pessoas em quem mais se confia.

A mesma linha de raciocínio pode ser aplicada na desconstrução de outra tese também muito difundida e equivocada, a saber, de que deixar a criança chorar à noite faz com que ela se torne independente e aprenda a dormir sozinha. Do absurdo dessa ideia só podemos concluir que seus defensores jamais se deram ao trabalho de investigar os motivos do choro infantil noturno; ou que, pelo menos, preferem não levar isso em consideração.

Até cerca de 4 meses de idade, aproximadamente, o bebê chora durante a noite porque precisa ser alimentado em intervalos curtos. No entanto, mesmo passada essa fase, e quando os ciclos das mamadas se tornam mais longos e ritmados pela alternância entre o dia e a noite, a maioria ainda continua a chorar. É perfeitamente natural que as crianças, assim como os adultos, tenham o sono interrompido algumas vezes durante a noite. Porém, enquanto nós conseguimos retomá-lo sem mesmo nos darmos conta desses leves despertares, a criança pequena tem dificuldade para voltar a dormir sozinha.

Tudo isso é questão de maturidade hormonal e neurológica. Não há quase nada a se fazer para mudar essa situação. Talvez a única providência interessante seja criar uma rotina diária que não deixe a criança muito agitada e que a leve, aos poucos, a internalizar os padrões de horários de sua família. No mais, é preciso dar tempo ao tempo.

Em geral, a maioria das crianças se torna capaz de dormir a noite inteira aos três ou quatro anos de idade. Para algumas, porém, essa conquista pode vir ainda mais tarde. Os métodos que prometem fazer com que toda e qualquer criança durma como um adulto precisam ser vistos com suspeição. Quando se trata de educação e criação de filhos, devemos sempre desconfiar das fórmulas genéricas e universais, que na maioria dos casos só servem para criar nos pais ansiedade e sensação de derrota, além de estressar as crianças.

O fato é que uma criança pequena, em geral, só se percebe segura se estiver perto de seus adultos de referência. Quando acorda à noite e nota que está só, sente-se desprotegida. Você já reparou que quando pensamos em um problema durante a noite ele sempre parece mais grave? O mesmo acontece com a solidão e os medos infantis. Por isso, deixar uma criança chorar à noite é negar a ela a proteção e o aconchego de que necessita justamente no momento do dia em que se imagina mais vulnerável.

Se uma criança acumula a experiência de ser deixada a chorar sozinha à noite, é possível que em alguns dias ela de fato pare de chorar, como argumentam os defensores dessa estratégia. Mas o que eles não dizem, ou não levam em consideração, é que isso tudo tem um preço. Ninguém pode acreditar honestamente que o choro da criança cessou porque ela encontrou na falta de resposta dos pais a chave para o desenvolvimento repentino de sua autonomia e independência. É bem mais plausível supor que ela desistiu de chorar porque entendeu que eles, definitivamente, não estão disponíveis para atendê-la naquela situação.

Não se trata de sugerir que os pais saiam correndo, desesperados, na direção da criança que chora no berço, como se fossem evitar uma tragédia. O importante é que lhe mostrem que estão sempre atentos às suas necessidades emocionais. Mas não há uma regra de como proceder na prática. Cada família deve criar as suas próprias estratégias, de acordo com o seu perfil e as suas particularidades.

Para muitas pessoas, ter que se levantar várias vezes à noite pode ser muito difícil, e até mesmo extenuante. Mas o fato é que criar bem uma criança envolve mesmo uma boa dose de abnegação. De todos os sacrifícios que temos que fazer na vida, aqueles que realizamos pelos nossos filhos são os que mais valem a pena. Um dia eles serão capazes de dormir a noite inteira sem que precisemos confortá-los. E quando menos esperarmos já não caberão mais no colo. Será então gratificante saber que foi a nossa atenção que lhes propiciou a serenidade necessária para que aprendessem a enfrentar a vida apoiados em suas próprias pernas.

 

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