
Todo mundo concorda que os pais não devem se desautorizar mutuamente na frente dos filhos. Porém, por mais que uma ideia pareça fazer sentido, para que ela possa funcionar como um guia para o nosso comportamento, é importante que sejamos capazes de compreender a fundo suas implicações. Afinal, por que os pais não devem se desautorizar mutuamente na frente da criança? Você já parou para pensar seriamente nisso? Já refletiu sobre as consequências que esse tipo de situação traz para a educação de seu filho?
Em primeiro lugar, quero esclarecer o que estou querendo dizer com a palavra “desautorizar”. Imagine que a mãe (ou o pai) está dando uma ordem, um conselho, um limite, ou simplesmente repreendendo o filho. Se o cônjuge interfere, opondo-se ou questionando essa ação ou discurso na frente da criança, ele está contribuindo para minar as bases da autoridade do outro. Isso é desautorizar. E essa atitude pode ter consequências a curto, médio e longo prazo.
Para que possamos compreender exatamente porque isso é tão prejudicial para a criança, é preciso refletir um sobre o próprio objetivo da educação doméstica. Já falei algumas vezes aqui no blog que educar uma criança consiste em elevá-la acima de si mesma, e que isso implica, em ampla medida, ajudá-la a aceitar limites, adiar prazer, controlar impulsos e desejos. Quanto mais a autoridade dos pais é percebida pela criança como algo legítimo, mais fácil será para ela conquistar o autodomínio e aprender a obedecer. É como se ela pudesse contar com uma força externa, que a puxa na direção almejada pelos pais e torna razoável e inquestionável a necessidade de seguir as suas orientações.
Vamos recuar um pouco no tempo para olhar com mais cuidado esse ponto. Antigamente, a maioria das mães permanecia em casa enquanto os pais saíam para trabalhar. A educação das crianças na esfera doméstica era da alçada da mulher. Mas ela podia recorrer à autoridade do marido toda vez que a sua própria autoridade se mostrava fraca. Era muito comum, em tempos passados, que as crianças ouvissem a mãe dizer: “quando seu pai chegar, vou contar para ele o que você fez!” Embora o pai ocupasse o lugar de autoridade máxima, ele delegava a autoridade doméstica para a mãe e estava disposto a fazê-la valer. Em suma, a criança sabia que tinha que obedecer à mãe, e que esta última podia contar com o aval do pai.
Sei que essa descrição é um pouco simplista, e não compreende todos os matizes e gradações que havia nas diversas realidades de outros tempos. Se me permito generalizar desse modo é porque o meu propósito é apenas o de estabelecer um contraste com a situação que vivemos hoje. Quero deixar bem claro, também, que não estou idealizando o passado. Sabemos que a autoridade central do pai nem sempre era exercida de maneira justa, e que ocorria de mulheres e crianças sofrerem abusos que hoje não toleramos. Mas o ponto para o qual quero chamar atenção aqui é que as mudanças culturais ocorridas nas últimas décadas, e em especial aquelas que incidem sobre as relações entre os cônjuges no interior da família, trouxeram, junto com o igualitarismo que tanto prezamos, algumas questões que ainda precisam ser equacionadas no que diz respeito à educação dos filhos.
Hoje em dia, a autoridade do pai e da mãe se distribui de maneira horizontal e simétrica no ambiente da casa. No modelo de família sob o qual vivemos hoje, não há hierarquia. Quando um ou outro possui mais autoridade de fato, isso se deve provavelmente a questões de temperamento e vocação educacional, e não ao modo como os papéis estão socialmente organizados. Mas o ponto que nos interessa aqui é que, nesse novo cenário, a criança tem que lidar com duas figuras de autoridade, que nem sempre estão de acordo em relação ao modo como as coisas têm que caminhar.
A criança logo percebe as diferenças no modo como o pai e a mãe se comportam diante das questões relacionadas à educação. Por volta dos três anos de idade, ela já sabe qual dos dois é o mais exigente, e qual é o mais flexível. Isso não é necessariamente um problema. Aprender a lidar com duas figuras de autoridade pode até ser bastante interessante do ponto de vista existencial, desde que resguardadas duas condições: que ambas compartilhem os mesmos valores básicos, os mesmos princípios morais; que cada uma delas seja capaz de respeitar as decisões tomadas pelo outro. E aqui chegamos ao ponto crucial.
Por mais que o pai e a mãe compartilhem os mesmos valores básicos e os mesmos princípios morais, jamais compartilharão de maneira absoluta a mesma visão de mundo. Cada um tem sua própria história afetiva, forjada pelas experiências vividas no contexto de sua família de origem. Ou seja, cada um traz para o convívio com os filhos a memória dos exemplos e preceitos que guiaram a sua própria educação. Isso significa que, em muitos momentos, suas perspectivas vão divergir e eles vão discordar.
Essas divergências são inevitáveis. E, por isso, é importante que haja sempre espaço para o diálogo sobre métodos e decisões educacionais. O casal pode até discutir de maneira enfática e calorosa. Isso é normal e acontece nas famílias mais harmoniosas. Porém, é muito importante que se tome cuidado para que essas discussões não ocorram na frente dos filhos. Mesmo que um limite pareça exagerado e uma bronca pareça injusta, a melhor estratégia de quem discorda é esperar até o momento em que a questão possa ser discutida sem a presença da criança. Não se trata de fingir para as crianças que o pai e a mãe estão sempre de acordo. E sim de fazer com que percebam que, mesmo que haja pontos de discordância, o apoio será mútuo, porque, pensem o que pensarem, façam o que fizerem, ambos estão sempre comprometidos com o bem dos filhos.
É claro que isso só vale porque estamos falando de pais que tratam os filhos com carinho, que se dedicam genuinamente, não praticam excessos de autoridade, não são negligentes, nem cometem abusos físicos ou morais. Se você está lendo esse texto, se você segue uma página de educação de crianças, é porque seus filhos são prioridade em sua vida e provavelmente também na de seu cônjuge. Por isso, sinto-me segura para afirmar que é melhor você ficar em silêncio do que interferir. Desde que não se tratar de algo grave o suficiente para colocar em risco o bem estar físico e emocional da criança, desautorizar o outro será mais prejudicial do que aguardar o contexto oportuno para discutir o assunto e tentar reconduzir a situação. E isso por três motivos.
O primeiro motivo diz respeito ao próprio fundamento da autoridade. A criança não é capaz de entender a racionalidade de uma regra se ela for imediatamente exposta ao seu contraditório. E no momento em que ela questiona a racionalidade do limite, passa a questionar também a autoridade de quem o estabeleceu. A autoridade parental precisa se apoiar sempre na razão. Devemos ser capazes, o tempo todo, de apresentar à criança uma explicação que justifique as nossas ordens. (Entenda bem: não estou dizendo que precisamos explicar tudo o tempo todo, e sim que é importante que haja uma explicação e que ela seja clara para nós.) E se uma ordem dada por um dos pais é imediatamente questionada pelo outro, o que ocorre é uma diminuição do nível de confiança da criança na figura de autoridade. É como se a criança pensasse assim: “Se o papai acha que a mamãe está errada, se ele precisa me defender, é porque nem tudo o que a mamãe faz é para o meu bem.”
A criança que vive submetida a mensagens diversas e contraditórias fica confusa, perdida, e essa falta de referência pode estar na origem de uma série de comportamentos neuróticos. Além disso, e aqui chegamos ao nosso segundo motivo, dependendo do temperamento da criança, ela pode começar a desenvolver estratégias de manipulação. Nem todas as crianças farão isso, mas aquelas que já possuem uma tendência a manipular situações, não hesitarão, para conseguir o que querem, em jogar o pai contra a mãe e vice-versa. E eu não preciso dizer o quanto isso será ruim para o seu próprio desenvolvimento como pessoa. É triste, mas é verdade: existem famílias em que os próprios pais criam condições para que a criança se torne uma pessoa manipuladora.
Por fim, o terceiro motivo pelo qual os pais não devem se desautorizar na frente dos filhos é que esse tipo de atitude pode gerar insatisfação, ressentimento e, por conseguinte, dar origem a conflitos desgastantes para a relação do casal. Sabemos o quanto é importante, para uma criança, crescer em um ambiente de harmonia e, quando desautorizamos frequentemente o nosso cônjuge na frente de nossos filhos, estamos contribuindo para que essa harmonia se torne algo ainda menos factível. Ao se perceber como pivô de conflitos frequentes entre os pais, a criança pode reagir de duas maneiras: tornando-se, como eu já disse, uma pessoa manipuladora, ou alimentando sentimentos de culpa ou remorso. Para a maioria das crianças, é difícil lidar com o fato de estarem no centro de uma briga entre as duas criaturas que elas mais amam no mundo.
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Imagem:
Constantin Émile Meunier (1831-1905), “Les Deux Amis”.
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