No artigo anterior, falei da importância da obediência, argumentando que um filho obediente estará sempre mais protegido do risco de se desviar do caminho desejado pelos pais. Agora, como prometi, vou tratar das condições que tornam possível a formação desse hábito na criança. E, para tanto, começo por explicar o que entendo exatamente, aqui, por “obediência”.
Na medida em que estabelecemos que o sentido da obediência filial está em seu papel formativo e protetor, fica evidente que não devemos esperar da criança o mesmo tipo de obediência que esperamos, por exemplo, de um soldado. Quando tratamos de educação doméstica, o hábito da obediência não deve ser confundido com a simples prontidão condicionada para cumprir ordens. Se a criança cumpre ordens apenas porque está com medo de ser castigada ou abandonada, ou porque espera ganhar uma recompensa, não se pode dizer, realmente, que se trate de uma criança obediente. Nada garante que ela continue a obedecer quando se vir livre das ameaças de punição ou das expectativas de prêmio.
Não estou, de modo algum, minimizando o valor do respeito filial. E é precisamente por isso que eu insisto em definir a obediência menos como um comportamento objetivo, que pode ser condicionado por gatilhos voláteis e superficiais, e mais como uma disposição moral integrada à própria subjetividade da criança, à forma como ela percebe o mundo e a sua posição na estrutura familiar. Nesse sentido, a criança pode ser dita de fato obediente quando segue, livre e espontaneamente, a orientação que recebe em casa, porque entende que esse é o modo mais correto e natural de agir. É somente assim que o hábito da obediência pode exercer uma função formativa e protetora.
Um dos fatores mais relevantes para a construção da obediência espontânea é a percepção, por parte da criança, da legitimidade da autoridade parental. A criança obedece na medida em que percebe os pais não só como fonte de cuidado, mas também como referências de comportamento e direção. E aqui chegamos então à questão crucial: quais seriam as condições que propiciam a formação dessa percepção?
O sucesso da educação doméstica, depende, primordialmente, da qualidade da relação da criança com os pais. Essa relação deve ser sólida, positiva, baseada, pelo lado da criança, no sentimento de segurança e proteção que dá origem ao que se chama, em psicologia, de “apego seguro”. Aos poucos, na medida em que a criança percebe que as ações educativas dos pais são, na verdade, expressões de atenção e cuidado, a criança vai se tornando capaz de intuir a relação entre obediência, de um lado, segurança e proteção, de outro.
Em artigos anteriores, tratei de como a relação de apego se desenvolve ao longo dos primeiros quatro anos de idade. (Para relembrar, veja, aqui, aqui e aqui, de preferência nessa ordem). Mas não é preciso esperar até que o apego esteja consolidado para estimular, na criança, o hábito da obediência. Ele pode e deve ser ensinado desde o segundo ano de vida, por meio da direção paciente e positiva. Para isso, basta que os pais estejam eles próprios seguros para tomar decisões sobre o bem-estar e a rotina do filho, bem como para orientar o seu comportamento. Se os próprios pais souberem enxergar a sua autoridade como algo benéfico e natural, a criança também vai percebê-la desse modo.
É importante, porém, que as expectativas em relação à obediência espontânea sejam proporcionais à idade. Em geral, os frutos de uma boa educação não serão colhidos antes dos seis anos, quando a criança já terá conquistado certas habilidades emocionais e cognitivas que facilitam o autocontrole dos impulsos, como, por exemplo, a capacidade de se colocar no lugar dos outros, de hierarquizar e manejar emoções contraditórias, de prever as consequências de seus atos. É preciso ter cuidado com as expectativas irreais. Enquanto a natureza não fizer todo o seu trabalho, os pais devem estar sempre atentos à necessidade de direcionar o comportamento da criança, orientando-a de maneira firme, porém gentil, sem repreendê-la com muita severidade. O importante é que ela seja conduzida na direção do que é bom e verdadeiro. Comportamentos inadequados não devem ser tolerados, mas não podemos perder de vista o fato de que a criança ainda está aprendendo a estar socialmente no mundo.
Em suma, a base afetiva segura é condição necessária para o exercício da autoridade parental genuína, cuja contrapartida é a obediência espontânea. Porém, para que ambas, autoridade e obediência, possam se efetivar, uma segunda condição ainda deve ser preenchida. Os próprios pais precisam estar seguros da legitimidade de sua posição de comando. No passado, a autoridade parental era um dado inquestionável. Hoje em dia, ela precisa ser conquistada numa batalha árdua contra uma série de obstáculos culturais.
Tenho falado aqui no blog sobre as dificuldades de educar nossas crianças num ambiente cultural que valoriza exageradamente a espontaneidade e a impulsividade, e autoriza ideias estapafúrdias como a de que os pais não têm muito a ensinar aos filhos, ou de que a criança deve ser deixada livre para fazer as suas escolhas de vida. Imaginar que a criança é capaz, por si mesma, de fazer escolhas de vida, é um enorme disparate. Escolhas de vida são feitas (ou deveriam sê-lo) a partir de princípios e critérios, e estes se formam ao longo do processo de educação. Ora, como pode então uma criança fazer escolhas de vida se ainda não formou critérios? E como podem os pais ajudar as crianças a formar critérios se a sua própria autoridade é deslegitimada? Quando os pais abrem mão do papel de orientadores, eles estão, simplesmente, passando a bola para terceiros.
Tenha sempre em mente que o exercício de uma autoridade parental temperada pela razão e pela empatia é o melhor presente que você pode dar ao seu filho. Nos primeiros anos de vida, as crianças aprendem principalmente por imitação, e costumam tomar por modelo os adultos, bem como outras crianças, que têm mais facilidade de se impor, de se fazer ouvir, de afirmar a sua perspectiva. Quando os pais não assumem com segurança o seu papel de orientadores, e não tomam para si a direção da educação dos filhos, é muito provável que estes fiquem mais suscetíveis a influências externas ao ambiente doméstico.
Mas veja bem. Quando eu afirmo que você deve exercer a sua autoridade parental sem receios ou hesitações, não estou insinuando que essa seja uma tarefa fácil. Além dos obstáculos culturais de que já falei, há que se contar, também, com a oposição da criança. A oposição é um instinto natural, um treino da individualidade. Cabe a nós, adultos, entendê-la como parte do processo e contorná-la de modo que no final das contas a situação não fuja do nosso controle.
O maior desafio da educação doméstica é levar a criança a internalizar princípios e regras sem violentar a essência de sua individualidade. Mas, como fazê-lo? Esse será o tema do próximo artigo, que fechará a série de três sobre o hábito da obediência. Falaremos de crianças fáceis e de crianças difíceis, de diálogo, prêmio e punição. E de como você pode criar estratégias para lidar com o seu filho do jeito que ele é, sem renunciar à sua própria autoridade. Não perca.
* * *
Imagem:
Émile Meunier ((1840 – 1895), “Portrait of a mother and daughter”.
* * *
Artigos relacionados:
Qual é o seu projeto para o seu filho?
Sim, um desafio e tanto. Um desafio diário, e nos tempos de hoje eu diria que é o maior de nossas vidas.
CurtirCurtir
Obrigada, Cesar!
CurtirCurtir
Excelente, como de hábito.
Vou compartilhar no FB.
Beijos
CurtirCurtir
Cristiane, excelente, como sempre. Que grande desafio é esse, ein? Mas concordo plenamente com todos os apontamentos. Obrigado e no aguardo do artigo final.
CurtirCurtir