Como lidar com a criança “difícil”?

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Este é o último artigo da série de três que publiquei aqui no blog sobre o tema da obediência. Nos artigos anteriores, defini o que é obediência, mostrei a importância de cultivar esse hábito em nossos filhos, e detalhei as condições relacionais que o tornam possível. Aqui, vou tratar da questão derradeira, que resume o maior desafio de quem educa: como conquistar a obediência da criança preservando a sua individualidade?

Para começar, quero destacar dois pontos que considero cruciais. Em primeiro lugar, nada é mais importante em educação do que a Regra de Ouro: trate seu filho do modo como você gosta de ser tratado. Respeite-o como pessoa. Em segundo lugar, e não menos importante: jamais permita que seu filho desrespeite você. Nenhuma expressão de desrespeito deve passar em branco.

Isso não é fácil, eu sei. A educação doméstica é tão carregada de interações que seria realmente um milagre se conseguíssemos ter o controle pleno da situação o tempo todo. A criança oferece, naturalmente, resistência à autoridade dos pais, e isso vale até para as mais cordatas. O impulso de oposição é um instinto natural, um treino de individualidade, que começa a se fazer notar de maneira mais evidente a partir dos dois anos de idade. Lidar com essa oposição pode ser muito desgastante em alguns momentos, mas não tem jeito. A criança precisa ser educada, ela precisa ser levada a desenvolver suas qualidades e controlar os seus defeitos, de modo que possa conviver bem e elevar-se na direção do que é bom e justo.

Mas como orientar nossos filhos sem exigir que eles deixem de ser eles próprios, exigência que, por sinal, estaria fadada ao fracasso e que só produziria consequências danosas? O primeiro passo para uma atuação educacional que respeite a pessoa da criança é o conhecimento e a compreensão de suas necessidades mais íntimas e de suas disposições mais fundamentais. Sem esse conhecimento não é possível prever as suas reações e levá-las em consideração em nossa prática educativa. Ele é a chave que nos permite afirmar a nossa autoridade sem recorrer a expedientes que envolvam desrespeito, violência e humilhação ou que exacerbem os conflitos ao invés de resolvê-los.

Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que existem crianças naturalmente mais opositoras que outras. Algumas relutam tanto em ceder que podemos dizer que, para elas, “existir” quase se confunde com “resistir”. Isso pode se dar por uma questão pura e simples de temperamento, ou também por problemas de auto-regulação emocional de fundo neurobiológico, que tornam necessária uma atenção mais especializada. Vamos tratar aqui apenas do primeiro caso, embora o que eu vou dizer não deixe de ser relevante também para o segundo.

O fato é que o impulso opositor é um traço estruturante da disposição existencial de algumas pessoas, e isso se revela desde cedo. Há crianças que precisam estar o tempo todo se expandindo, se fazendo notar por sua capacidade de se impor. Elas trazem consigo, desde o berço, um forte ímpeto de afetar o mundo. No que se refere à colocação de limites, essas crianças são sempre mais difíceis de se lidar.

Há crianças, por outro lado, que não têm necessidade de se colocar o tempo todo, de expressar dramaticamente a sua individualidade, de disputar o poder com os outros, e muito menos com os pais. Elas não os confrontam, porque a capacidade de colher as impressões e absorver as orientações dos adultos está perfeitamente integrada à sua própria disposição existencial. E entre esses dois tipos, digamos, extremos, há uma infinidade de formas pessoais de lidar com os limites impostos pela realidade. Digo “infinidade” porque – não devemos esquecer – cada criança é uma configuração em si mesma.

Porém, é sempre bom lembrar que o comportamento opositor pode se formar mesmo nas crianças mais cordatas, como decorrência de circunstâncias imediatas ou mais amplas da vida. A criança pode se tornar mais resistente à ação educativa dos pais por uma série de fatores: uma relação insegura de apego, ciúmes de um irmão, ansiedade decorrente de um ambiente doméstico permanentemente desarmônico ou de uma experiência traumática, conflitos na escola, sedentarismo excessivo, etc. O estresse físico também é um gatilho muito frequente do comportamento opositor, principalmente em crianças pequenas. A criança mais fácil pode se tornar impossível simplesmente porque está com dor, sono,  fome. Por tudo isso, antes de concluir que uma criança seja “difícil” por natureza, é preciso eliminar a possibilidade de que o seu comportamento esteja sendo influenciado por fatores externos.

Se, mesmo com essa análise das circunstâncias, você identifica o impulso opositor como um aspecto da disposicão pessoal de seu filho, a única coisa inteligente a fazer é lidar com esse fato como um dado da realidade. Foi confiada aos seus cuidados uma criatura enérgica que gosta de exercer poder. Aceite o seu filho como ele é. Não o rotule, não o defina em termos depreciativos. O impulso e a capacidade de se impor não são características intrinsecamente negativas. Ao contrário, se usadas em prol de boas causas e valores, tornam-se recursos valiosos e admiráveis. Sua meta deve ser a de levar o seu filho ao melhor de si mesmo, de ajudá-lo a conduzir o seu ímpeto de dominar a um equilíbrio virtuoso, e não a de transformá-lo em outra pessoa. E isso depende de você conseguir exercer a sua autoridade sem criar uma escalada de conflitos.

A tarefa de educar a criança opositora deve ser encarada menos como um desafio e mais como uma arte. Você precisará mobilizar as suas melhores técnicas e qualidades: paciência, empatia, persistência, foco, imaginação. Fique tranquilo. Satisfeitas as necessidades normais de apego e cuidado da criança, o caráter opositor pode se tornar perfeitamente contornável, transformando-se, com o tempo, apenas em um modo particular e pessoal de reação ao imperativo de obedecer aos pais. Por outras palavras, a criança eminentemente opositora sempre testará os limites da obediência, mas, se ela for bem atendida em suas necessidades e bem conduzida, encontrará nos pais uma referência de segurança e autoridade. Aos poucos ela vai aprender a se controlar e ficará confortável com isso.

Uma maneira de lidar com a oposição da criança sem correr o risco de asfixiar a sua individualidade é priorizar aquilo que para você é essencial, dando ao acessório o lugar menor que lhe cabe. Esse discernimento é crucial para evitar que a relação seja desgastada com inflexibilidades desnecessárias. Princípios, valores e regras que sejam inegociáveis para você devem ser apresentados ao seu filho como tal. Todo o resto, aquilo que é secundário, pode ser acomodado de acordo com as circunstâncias do momento e as características da criança. Será mesmo tão imprescindível comer aquele legume pelo qual ela sempre manifestou repulsa? Vale a pena começar uma briga por causa da escolha da roupa? Por que não evitar situações que podem ser evitadas e às quais, você já sabe, seu filho oferecerá resistência?

Refletir sobre a sua hierarquia de valores na educação é absolutamente imprescindível. Mas é preciso também estar atento a uma série de fatores que podem tornar momentaneamente confusa a nossa percepção da diferença entre o que é essencial e o que é acessório. Dentre os mais frequentes, eu destacaria os estados emocionais conturbados, o cansaço intenso, e a pressão exercida pelo olhar de terceiros. Ninguém está livre dessas armadilhas, e neutralizá-las é sempre mais fácil se estivermos conscientes delas. Educar requer um constante exercício de autoconsciência, além de uma boa dose de independência em relação à aprovação alheia. Procure não agir por impulso, cultive o autocontrole e o senso de prioridade, faça um esforço para não dar à criança ordens e direções que você não esteja realmente convencido de que precisam ser inevitavelmente cumpridas ou de que ela é de fato capaz de cumprir. O seu compromisso é com o seu filho e não com a opinião dos outros. Só você pode saber o melhor modo de lidar com ele e colocá-lo no caminho da virtude.

O trabalho de educar requer uma boa dose de inteligência e serenidade. Não há manual que possa abarcar toda a complexidade da tarefa de elevar uma criança aos seus patamares mais altos. Cada pessoa é um ser único, insubstituível, e ninguém veio ao mundo para ser modificado em sua essência. As crianças estão aqui para ser acolhidas, protegidas, ensinadas e orientadas a desenvolver suas melhores inclinações. E é nesse sentido que a nossa ação educativa se reveste de um grande valor. Não devemos hesitar: temperada pela razão e pela empatia, a autoridade dos pais é uma riqueza para a criança.

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Imagem: 

“In Disgrace”, Charles Burton Barber (1845-1894) (detalhe).

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Como conquistar a obediência de seu filho?

Como conquistar a obediência de seu filho?

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No artigo anterior, falei da importância da obediência, argumentando que um filho obediente estará sempre mais protegido do risco de se desviar do caminho desejado pelos pais. Agora, como prometi, vou tratar das condições que tornam possível a formação desse hábito na criança. E, para tanto, começo por explicar o que entendo exatamente, aqui, por “obediência”.

Na medida em que estabelecemos que o sentido da obediência filial está em seu papel formativo e protetor, fica evidente que não devemos esperar da criança o mesmo tipo de obediência que esperamos, por exemplo, de um soldado. Quando tratamos de educação doméstica, o hábito da obediência não deve ser confundido com a simples prontidão condicionada para cumprir ordens. Se a criança cumpre ordens apenas porque está com medo de ser castigada ou abandonada, ou porque espera ganhar uma recompensa, não se pode dizer, realmente, que se trate de uma criança obediente. Nada garante que ela continue a obedecer quando se vir livre das ameaças de punição ou das expectativas de prêmio.

Não estou, de modo algum, minimizando o valor do respeito filial. E é precisamente por isso que eu insisto em definir a obediência menos como um comportamento objetivo, que pode ser condicionado por gatilhos voláteis e superficiais, e mais como uma disposição moral integrada à própria subjetividade da criança, à forma como ela percebe o mundo e a sua posição na estrutura familiar. Nesse sentido, a criança pode ser dita de fato obediente quando segue, livre e espontaneamente, a orientação que recebe em casa, porque entende que esse é o modo mais correto e natural de agir. É somente assim que o hábito da obediência pode exercer uma função formativa e protetora.

Um dos fatores mais relevantes para a construção da obediência espontânea é a percepção, por parte da criança, da legitimidade da autoridade parental. A criança obedece na medida em que percebe os pais não só como fonte de cuidado, mas também como referências de comportamento e direção. E aqui chegamos então à questão crucial: quais seriam as condições que propiciam a formação dessa percepção?

O sucesso da educação doméstica, depende, primordialmente, da qualidade da relação da criança com os pais. Essa relação deve ser sólida, positiva, baseada, pelo lado da criança, no sentimento de segurança e proteção que dá origem ao que se chama, em psicologia, de “apego seguro”. Aos poucos, na medida em que a criança percebe que as ações educativas dos pais são, na verdade, expressões de atenção e cuidado, a criança vai se tornando capaz de intuir a relação entre obediência, de um lado, segurança e proteção, de outro.

Em artigos anteriores, tratei de como a relação de apego se desenvolve ao longo dos primeiros quatro anos de idade. (Para relembrar, veja, aqui, aqui e aqui, de preferência nessa ordem). Mas não é preciso esperar até que o apego esteja consolidado para estimular, na criança, o hábito da obediência. Ele pode e deve ser ensinado desde o segundo ano de vida, por meio da direção paciente e positiva. Para isso, basta que os pais estejam eles próprios seguros para tomar decisões sobre o bem-estar e a rotina do filho, bem como para orientar o seu comportamento. Se os próprios pais souberem enxergar a sua autoridade como algo benéfico e natural, a criança também vai percebê-la desse modo.

É importante, porém, que as expectativas em relação à obediência espontânea sejam proporcionais à idade. Em geral, os frutos de uma boa educação não serão colhidos antes dos seis anos, quando a criança já terá conquistado certas habilidades emocionais e cognitivas que facilitam o autocontrole dos impulsos, como, por exemplo, a capacidade de se colocar no lugar dos outros, de hierarquizar e manejar emoções contraditórias, de prever as consequências de seus atos. É preciso ter cuidado com as expectativas irreais. Enquanto a natureza não fizer todo o seu trabalho, os pais devem estar sempre atentos à necessidade de direcionar o comportamento da criança, orientando-a de maneira firme, porém gentil, sem repreendê-la com muita severidade. O importante é que ela seja conduzida na direção do que é bom e verdadeiro. Comportamentos inadequados não devem ser tolerados, mas não podemos perder de vista o fato de que a criança ainda está aprendendo a estar socialmente no mundo.

Em suma, a base afetiva segura é condição necessária para o exercício da autoridade parental genuína, cuja contrapartida é a obediência espontânea. Porém, para que ambas, autoridade e obediência, possam se efetivar, uma segunda condição ainda deve ser preenchida. Os próprios pais precisam estar seguros da legitimidade de sua posição de comando. No passado, a autoridade parental era um dado inquestionável. Hoje em dia, ela precisa ser conquistada numa batalha árdua contra uma série de obstáculos culturais.

Tenho falado aqui no blog sobre as dificuldades de educar nossas crianças num ambiente cultural que valoriza exageradamente a espontaneidade e a impulsividade, e autoriza ideias estapafúrdias como a de que os pais não têm muito a ensinar aos filhos, ou de que a criança deve ser deixada livre para fazer as suas escolhas de vida. Imaginar que a criança é capaz, por si mesma, de fazer escolhas de vida, é um enorme disparate. Escolhas de vida são feitas (ou deveriam sê-lo) a partir de princípios e critérios, e estes se formam ao longo do processo de educação. Ora, como pode então uma criança fazer escolhas de vida se ainda não formou critérios? E como podem os pais ajudar as crianças a formar critérios se a sua própria autoridade é deslegitimada? Quando os pais abrem mão do papel de orientadores, eles estão, simplesmente, passando a bola para terceiros.

Tenha sempre em mente que o exercício de uma autoridade parental temperada pela razão e pela empatia é o melhor presente que você pode dar ao seu filho. Nos primeiros anos de vida, as crianças aprendem principalmente por imitação, e costumam tomar por modelo os adultos, bem como outras crianças, que têm mais facilidade de se impor, de se fazer ouvir, de afirmar a sua perspectiva. Quando os pais não assumem com segurança o seu papel de orientadores, e não tomam para si a direção da educação dos filhos, é muito provável que estes fiquem mais suscetíveis a influências externas ao ambiente doméstico.

Mas veja bem. Quando eu afirmo que você deve exercer a sua autoridade parental sem receios ou hesitações, não estou insinuando que essa seja uma tarefa fácil. Além dos obstáculos culturais de que já falei, há que se contar, também, com a oposição da criança. A oposição é um instinto natural, um treino da individualidade. Cabe a nós, adultos, entendê-la como parte do processo e contorná-la de modo que no final das contas a situação não fuja do nosso controle.

O maior desafio da educação doméstica é levar a criança a internalizar princípios e regras sem violentar a essência de sua individualidade. Mas, como fazê-lo? Esse será o tema do próximo artigo, que fechará a série de três sobre o hábito da obediência. Falaremos de crianças fáceis e de crianças difíceis, de diálogo, prêmio e punição. E de como você pode criar estratégias para lidar com o seu filho do jeito que ele é, sem renunciar à sua própria autoridade. Não perca.

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Imagem: 

Émile Meunier ((1840 – 1895), “Portrait of a mother and daughter”.

 

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Para quem cresceu em uma cultura educacional como a nossa, na qual o desejo tem precedência não só sobre a responsabilidade individual, mas também sobre a própria realidade do mundo, pode parecer contra intuitiva a ideia de que as crianças devem obedecer a seus pais. Aliás, em nossos dias, a palavra “obediência” parece até mesmo soar mal.

Se prestarmos atenção, veremos que o verbo “obedecer” foi praticamente banido dos textos e conversas educacionais da classe falante, tendo sido substituído (mas apenas quando estritamente necessário), por eufemismos vagos, genéricos e superficiais como “aceitar limites”. Hoje em dia, não é de bom tom dizer a uma criança: “você tem que me obedecer”. O problema é o mesmo de sempre. Não importam as crianças reais, e as realidades que impactam o seu futuro. Importam somente as ideias inconsequentes que vão sendo cultivadas na bolha existencial moderninha e progressista.

Parece exagero? Outro dia passou na minha timeline do Face Book a seguinte frase: ”O verdadeiro educador é aquele que ajuda a pensar e não aquele que ensina a obedecer.” Analise essa frase. Desde quando obedecer é o oposto de pensar? Não obstante a falta de sentido, a frase tinha centenas de curtidas! As pessoas que a curtiram certamente não se deram ao trabalho de refletir sobre as implicações concretas dessa formulação quando aplicada como princípio educacional. Eu gostaria de fazer a cada uma delas a seguinte pergunta: como é possível proteger e orientar um filho que não obedece?

Imaginemos, por exemplo, um adolescente que vive com sua dedicada família em uma comunidade tomada pelo tráfico de drogas. Por mais presentes e cuidadosos que sejam, seus pais não podem evitar que ele se depare, cotidianamente, com uma enorme quantidade de modelos negativos, e tampouco que viva uma série de experiências cotidianas que o colocam em situação de vulnerabilidade. Alguém duvida que esse jovem estará relativamente mais protegido se for capaz de seguir as orientações dos pais, de ouvir os seus conselhos, enfim, se tiver formado, ao longo da infância, o hábito de obedecê-los? Ou será que os curtidores da frase nonsense diriam que é melhor deixar que esse adolescente se guie por seus próprios critérios, e tome as suas próprias decisões? 

Escolhi ilustrar o meu ponto com essa situação extrema para que não restem dúvidas de que ideias aparentemente libertárias podem ter consequências trágicas. A verdade é que, na vida real, nada pode proteger mais uma criança do que ter em seus próprios pais uma referência e um guia de como se conduzir num mundo que ela ainda não experimentou e que mal pode compreender. Muitas vezes, os próprios desejos da criança a conduzem na direção de situações cujo risco ela ainda não tem recursos cognitivos para avaliar. E é nessas situações, em que o impulso infantil colide com a orientação dos pais, que a obediência se torna tão importante. Pais que investem o seu tempo e a sua energia para formar em seus filhos o hábito da obediência dão, portanto, uma demonstração inequívoca de atenção e de cuidado.

Alguém poderia argumentar que nem todos os pais se preocupam genuinamente com o bem-estar de seus filhos. E essa é uma verdade inegável. Desde que o mundo é mundo, existem pais irresponsáveis, negligentes, e até mesmo perversos. Porém, independentemente da qualificação que daremos a esses pais, não é a eles que eu me dirijo aqui. Esses pais, muito provavelmente, não seguem o meu blog.  Estou falando com aqueles que assumem a sua responsabilidade, que tentam com todas as suas forças fazer o melhor pelos filhos, mas que, com alguma frequência, tornam-se confusos em relação à legitimidade de sua própria autoridade. O meu recado é para você, que está dedicando parte do seu tempo para ler este artigo. Seu filho precisa de sua proteção e orientação. E você só conseguirá orientá-lo, se ele for capaz de lhe obedecer.

A relação entre obediência e proteção não costuma ser questionada quando se trata da segurança física da criança. Ninguém permitirá que o filho de três anos atravesse a rua sozinho, ou viaje de carro sem cinto de segurança, por pior que seja a birra. Ora, quando se trata de orientação para a vida, a equação não é diferente. A criança que não obedece torna-se mais vulnerável a outras influências sobre as quais, com o passar do tempo, os pais terão cada vez menos controle, como a dos amigos, da mídia, dos professores. No livro Hold On To Your Kids (2004), o psicólogo canadense Gordon Neufeld discute o problema muito atual da influência crescente e nociva do grupo de pares (i. e, dos colegas de mesma idade) sobre o comportamento e a visão de mundo dos jovens contemporâneos. Nunca houve, em nenhuma época, situação semelhante. Os jovens atuais, em geral, seguem a orientação do grupo de pares mais do que a de seus pais, e este fenômeno é estimulado, em ampla medida, pela omissão desses últimos.

Em parte porque se sentem confusos em relação à sua própria autoridade, em parte porque não são capazes de assumir a parentalidade com todos os sacrifícios que ela envolve, o fato é que uma boa parte dos pais, hoje em dia, delega a terceiros tarefas que são suas. Isso se traduz, por exemplo, na expectativa de que a escola ajuste o comportamento dos filhos. E também na criação de rotinas cotidianas que estimulam uma dependência excessiva da criança em relação aos coleguinhas, que passam assim a representar referências para a formação da auto-imagem, e a ditar padrões de consumo e comportamento social.

Enquanto os coleguinhas são crianças e temos um controle relativo sobre as circunstâncias dessas interações, tudo pode correr razoavelmente bem. Mas a médio e longo prazo, quando nossos filhos entram na escola de ensino fundamental e depois na universidade, como garantir a nossa proteção se a influência dos amigos for maior que a nossa? Como lembra N. Gordon, a diferença fundamental entre a relação com os pais e a relação com os pares é que o prestígio junto aos pares precisa ser permanentemente reafirmado pelo mimetismo e pela submissão às expectativas alheias, ao passo que o amor dos pais é incondicional. E é por isso que só nós estamos em condições de proteger verdadeiramente os nossos filhos.

Dizer que é importante criar filhos obedientes não significa de modo algum que isso seja tarefa fácil. No próximo artigo, vou discutir as condições que possibilitam tanto o exercício da autoridade paterna quanto a formação do hábito da obediência nas crianças, e mostrar que é possível – embora, como eu disse, não seja fácil – levá-los a nos obedecer sem desrespeitar a sua individualidade. Ao contrário do que pensa o autor da frase infeliz que passou na minha timeline, a obediência não torna a criança incapaz de pensar por si própria. Muito pelo contrário. É justamente a proteção que resulta da obediência que permitirá à criança desenvolver, em segurança e no tempo apropriado, todas as suas tendências e capacidades pessoais. É o breve período de vida que ela passa no ninho, sob os cuidados e a influência dos pais, que lhe possibilitará tornar-se uma pessoa independente e autônoma.

Isso é exatamente o contrário do que acontece com as crianças e os jovens guiados por influências externas à família, em que a orientação não se dá no compasso do amor incondicional. Perdidos num ambiente de múltiplas referências e ao acaso de relacionamentos com pessoas que nem sempre querem o seu bem, eles se tornam afetivamente dependentes da opinião alheia. Incapazes de formar seus próprios critérios e juízos, seguem o comportamento da manada. Passam a vida repetindo ideias alheias como se fossem suas, e nunca se tornam plenamente capazes de assumir a responsabilidade por seus próprios atos.

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Imagem: Émile Munier (1840-1895), “Pardon, mama”.

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