A menos que você pratique ou seja familiarizado com o homeschooling, provavelmente jamais ouviu falar na escritora britânica Charlotte Mason, que viveu entre os anos 1842 e 1923. Além de ter se dedicado ao tema da orientação moral das crianças, C. Mason formulou um currículo e um método completo de educação acadêmica domiciliar. Com um estilo de escrita leve e cativante, ela alterna reflexões conceituais com descrições vívidas de situações do cotidiano infantil e doméstico. Infelizmente, a repercussão do trabalho dessa notável educadora é praticamente nula no campo da pedagogia brasileira, por razões que ficarão claras ao longo deste artigo.
Minha intenção aqui é chamar atenção para uma das noções mais importantes dentre as formuladas por C. Mason, e sobre a qual se ergue, a meu ver, a sua própria visão de educação: a noção de hábito. Para ela, a orientação firme e incansável da criança no sentido do desenvolvimento de bons hábitos seria o meio mais consistente e eficaz para ajudá-la a transcender a sua própria natureza e desenvolver as suas melhores possibilidades existenciais da forma mais elevada possível.
Mas falar em educação de hábitos está fora de moda. Na verdade, mais do que a uma questão de moda, a resistência que essa proposta suscita está ligada à própria ideia de pessoa que está na base da cultura educacional contemporânea. Hoje em dia, quando se imagina uma “pessoa realizada”, pensa-se, antes de mais nada, em alguém que conseguiu ou tem conseguido, ao longo de sua vida, dar vazão a todos os seus impulsos e satisfazer todos os desejos. Levada por essa mentalidade, boa parte dos pais, infelizmente talvez a maioria, acaba se contentando com o papel de alimentar, vestir, garantir a segurança física e fornecer instrução para que, futuramente, os filhos alcancem um tipo de sucesso material e profissional que lhes permita “realizarem-se” nesse sentido estritamente utilitarista e hedonista.
Ora, numa perspectiva educacional em que a espontaneidade e a impulsividade são mais valorizadas do que a autoconsciência e o autocontrole, formar hábitos soa como uma proposta autoritária e repressora. Mas é preciso desfazer este equívoco, em cuja raiz está aquela mesma confusão de sempre, entre espontaneidade e liberdade, tão característica de nossa época, e que dificulta todo e qualquer esforço educacional.
Uma criação que favoreça a espontaneidade não colocará a criança no caminho da liberdade, pois só é possível falar em liberdade quando a consciência impera sobre os impulsos. Não somos livres quando fazemos o que desejamos ou o que nos é mais “natural”, e sim quando fazemos o que, em nosso entender, deve ser feito. Quando uma pessoa preguiçosa deixa de realizar uma tarefa porque está com preguiça, ela não está exercendo a sua liberdade. Muito pelo contrário.
Para C. Mason, desde que nasce, a criança já é uma pessoa, dotada de disposições prévias, e sua personalidade tem de ser respeitada. Mas isso não exime os pais, de modo algum, da grave responsabilidade de conduzir a sua formação moral, ajudando-a a se libertar dos aspectos negativos e inferiores de sua própria natureza. Pois se, por um lado, a criança já nasce com as tendências que devem moldar o seu futuro, “toda tendência tem suas ramificações, suas possibilidades boas e ruins; e colocar a criança no caminho certo para o cumprimento das potencialidades que lhe são inerentes é a vocação dos pais.”
Entendendo o ser humano como uma “criatura de hábitos”, C. Mason chama atenção para o fato de que estes últimos serão formados independentemente da ação consciente dos adultos, sob a influência da atmosfera familiar. Se deixada à sua própria sorte, sem orientação, a criança desenvolverá hábitos físicos e morais que, das duas uma: ou seguirão majoritariamente as linhas de sua própria natureza ou mimetizarão o comportamento de terceiros, o que, dependendo do caso, pode não ser desejável. Somente uma educação doméstica ativamente comprometida com a formação de bons hábitos pode positivar, aperfeiçoar e elevar as disposições prévias da criança, assegurando que ela trilhe um bom caminho com o mínimo de esforço de sua parte.
É claro que estará sempre aberta a possibilidade de que a criança, mais tarde, e por seus próprios méritos, consiga superar os efeitos de uma educação excessivamente indulgente. Uma educação ruim, em qualquer sentido e por pior que seja, não sela o destino de uma pessoa. Mas se deixamos todo o esforço de transcender-se nas mãos de nossos próprios filhos, de que vale ser pai ou mãe? Nossa obrigação é orientá-los e conduzi-los até que sejam capazes de caminhar por si próprios. E o trabalho cotidiano de formação de bons hábitos é a forma mais verdadeira e eficaz de atenção e cuidado.
Além de sugerir métodos para a formação de bons hábitos, C. Mason também nos dá algumas orientações preciosas sobre como alterar maus hábitos já instalados. Mas ela ressalta a importância de se conhecer bem a criança. Disso depende a compreensão das causas que levaram à cristalização do hábito indesejável. Se uma criança, por exemplo, mente com frequência, é preciso começar por uma investigação dos motivos que a levam a mentir. Um temperamento avesso ao conflito? O temor de ser repreendida ou punida? Tendência a manipular as situações e pessoas à sua volta?
Uma vez conhecidas as causas desse comportamento, os pais devem, então, com paciência e dedicação, encorajá-la a dizer sempre a verdade, fazendo-a compreender as graves consequências do vício da mentira, e a importância de modificar o seu comportamento. Devem, ainda, manter-se vigilantes, acompanhando todos os passos da criança para garantir que ela não tenha nenhuma oportunidade de mentir. À medida em que o hábito de dizer a verdade vai se instalando, a criança adquire autoconsciência e confiança em sua própria capacidade de dizer a verdade.
A lista de bons hábitos de C. Mason cobre uma vasta gama de atitudes e comportamentos, dentre os quais podemos destacar a obediência aos pais, a gentileza, e a atenção ao que está sendo dito ou feito. Ao lado, é claro, dos hábitos de higiene, asseio pessoal e polidez. Alguns hábitos são mais passíveis de ser assimilados pela simples observação do exemplo dos adultos, sem grande esforço por parte dos pais, bastando que a atmosfera doméstica os estimule. Este é o caso, por exemplo, dos hábitos de gentileza e cortesia. Outros são mais dependentes de treinamento, como o hábito da atenção. Mas nada disso deve ser tomado como dado absoluto, pois cada criança é um indivíduo único no mundo. E por isso é tão importante que os pais conheçam profundamente os seus filhos.
Embora C. Mason seja daquele tipo de educador, tão raro hoje em dia, que não se furta a fazer juízos de valor, sua reflexão sobre a importância do hábito é plenamente sensível à questão da individualidade. E é justamente nesse ponto que reside todo o seu fascínio. É verdade que, cerca de um século depois, alguns detalhes de seus conselhos podem nos parecer anacrônicos. Mas se soubermos compreender o cerne de sua mensagem e colocar os seus ensinamentos em perspectiva, teremos à nossa disposição uma preciosa fonte de preceitos e orientações para lidar com os problemas educacionais específicos de nossas crianças. E qual é a mensagem principal? A de que precisamos estar sempre atentos e diligentes quando se trata de ajudá-las a desenvolver o seu caráter no sentido da ordem, da beleza e da autoconsciência, por meio do cultivo de bons hábitos.
Como bem lembra C. Mason, quando nossos filhos ficam doentes, não medimos esforços para cuidar deles e permanecer ao seu lado, até que possamos vê-los novamente saudáveis e ativos, correndo pela casa. Pois bem, é desse mesmo zelo e dessa mesma vigília que devemos ser capazes quando se trata de promover o seu bom desenvolvimento moral. E o segredo do sucesso é tratar de um hábito de cada vez, com delicadeza, constância e determinação.
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Fontes consultadas:
Habits: The Mother´s Secret of Success, Charlotte Mason, Deborah Taylor-Hough (ed.)
Formation of Character, Charlotte Mason.
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Imagem:
“Reading Bluebeard”, Alfred Morgan (1835-1924).
Obrigada, Laudicea!
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Como sempre excelente texto.
Parabéns Cristiane pela lucidez.
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Obrigada, Ju, pelo incentivo de sempre!
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Cris, parabéns por mais este texto! O segredo está na disposição dos pais para exercer a “orientação firme e incansável”. Muito pertinentes as suas colocações, como sempre!
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