As crises de oposição da criança: como lidar, o que fazer?

Toda vez que abro uma caixinha de perguntas no Instagram, aparece alguém com dúvida sobre como lidar com a birra da criança pequena. Quase que invariavelmente. Por esse motivo, resolvi esclarecer o meu pensamento acerca desse assunto com o nível de detalhamento que ele merece. Na verdade, no processo de escritura desse texto, eu me dei conta de que o que vou dizer aqui a respeito de como os pais devem se conduzir durante as crises de oposição poderia, de certa forma, ser estendido à questão mesma de como devem construir a sua relação de autoridade com os filhos.

A partir dos dois e até os três ou quatro anos de idade, a birra é um comportamento normal e esperado. O que estamos chamando de birra, aqui, é um tipo de reação em que a criança chora, estende o corpo no chão, esperneia, e parece impermeável a qualquer tentativa de apaziguamento por parte dos adultos, levando os pais a um nível de desespero que muitas vezes faz com que eles próprios se descontrolem. Quando a birra ocorre em público, é muito comum que os pais se sintam impotentes e constrangidos. Não obstante o fato de o protagonista da cena ser a criatura que eles mais amam no mundo, naquele momento, eles se sentem tomados por emoções muito negativas: irritação, vergonha, raiva.

Assim como a birra é um comportamento esperado, também é normal que os pais experimentem esse tipo de reação ao se perceberem impotentes. Porém, se você tem uma criança de dois ou três anos em casa, eu tenho uma boa notícia: você não é de fato impotente, existe luz no fim do túnel. Para deixar de se sentir impotente, é preciso apenas que você entenda o que está acontecendo com o seu filho quando ele tem um ataque de birra, e adquira algumas ferramentas conceituais que vão lhe ajudar a se conduzir de maneira correta e eficiente durante essas crises. Vamos, então, nessa sequência.

A criança pequena ainda não teve tempo de desenvolver a capacidade de se controlar, que depende da maturação de algumas estruturas psicofísicas. Por isso, ela tende a reagir de forma disruptiva, e até mesmo agressiva, às frustrações do dia a dia. Mesmo em condições educacionais extremamente favoráveis, ela não estará pronta para o autocontrole. Além disso, encorajada por uma relativa autonomia motora e linguística, e tranquilizada pelo fato do mundo não ser mais um lugar tão novo e estranho, a criança começa a testar de maneira contundente a sua própria autonomia. Agora, em muitas ocasiões, ela faz questão de explorar o seu entorno (pretensamente) sem amparo ou ajuda. Nos limites da diminuta esfera de vida que ela já conhece por hábito, nasce o impulso de exercitar a sua vontade. E isso está na origem de muitas frustrações, seja porque a criança nem sempre consegue fazer sozinha o que planeja, seja porque muitas vezes os pais precisam colocar freio em suas pretensões.

Em resumo, a birra nada mais é do que um efeito da incapacidade da criança de lidar com a frustração que lhe assalta sempre que seus desejos se chocam com a estrutura da realidade, tanto com a realidade em seus aspectos mais “naturais”, como quando a torre de lego cai ou um brinquedo se quebra, quanto em seus aspectos mais “culturais”, como quando os adultos impõem ativamente limites e regras à criança.

O impulso de autonomia nem sempre resulta em ataques de birra, mas, para a maioria das crianças, costuma se traduzir em atitudes de ardente teimosia. Elas passam a querer escolher sozinhas suas próprias roupas, insistem em fazer coisas sem ajuda, recusam-se a colocar o cinto de segurança ou a serem conduzidas pela mão na rua. Em outros casos, o impulso de autonomia pode se limitar à vontade de tomar decisões sobre a rotina. “Não quero comer”, “não vou tomar banho”. O fato é que, em algum momento a partir dos dois anos de idade, a maioria das crianças começa a dizer “não” de um modo que, aos adultos, parece quase obsessivo. Com ou sem birra, é preciso ter serenidade para lidar com a criança nessa fase.

A primeira coisa é não valorizar demais esses comportamentos, e não se intimidar com eles. Sim, eles fazem parte do processo natural de desenvolvimento de seu filho. Porém, isso não significa que você deva fazer vista grossa, simplesmente dar tempo ao tempo. Ao contrário. O nosso papel é auxiliar a natureza, de maneira consciente e ativa. A maturação de certas estruturas psicofísicas é um fator necessário, mas não suficiente, para a conquista do auto-controle. E, além disso, ela só se completa no final da adolescência. Os adultos que cuidam da criança precisam, portanto, fazer a sua parte, ensinando-a a lidar com as suas próprias frustrações, a comportar-se de maneira mais equilibrada diante de uma vontade não satisfeita.

O impulso natural da criança é na direção da maturidade, mas não é verdade que existem hoje em dia o que mais vemos por aí são adultos imaturos? Um adulto normal já não se joga no chão quando é impedido de fazer algo que deseja. Porém, quantos adultos não conhecemos que são incapazes de lidar com a frustração? Quantos não reagem à estrutura da realidade fazendo sempre algum tipo de birra e infernizando a vida de quem está à sua volta?

Mas voltemos às crianças.

Algumas crianças fazem mais birra que outras e, inicialmente, podemos dizer que isso está ligado às disposições do temperamento. Por que eu digo “inicialmente”? Porque, independentemente do temperamento da criança, fatores como o ambiente doméstico, as circunstâncias cotidianas e o modo como os pais se conduzem, podem ajudar ou atrapalhar o desenvolvimento do autocontrole. Existem crianças que, por sua própria natureza, tentarão impor a sua vontade mesmo que isso tenha um custo para elas. Porém, até a criança cordata, naturalmente pouco disposta ao conflito e ao enfrentamento com os pais, pode se tornar birrenta se for afetivamente negligenciada, tratada com permissividade excessiva, ou exposta diariamente a circunstâncias estressantes.

O que seriam, mais precisamente, circunstâncias estressantes? Assim como acontece com os adultos, a fome, o sono e a agitação excessiva são estados que costumam produzir irritabilidade. Por isso, a primeira providência educacional dos pais deve ser a de estabelecer uma rotina de alimentação, sono, higiene e lazer que restrinja as possibilidades de que a criança adentre esses estados fisiológicos de irritação que funcionam como gatilhos quase imediatos para a birra.

Mas o que fazer quando, mesmo controladas essas condições, a criança se joga no chão, chora de forma estridente, e se recusa a aceitar que as coisas não se passem exatamente como ela quer? Diante de uma criança fazendo birra, devemos sempre ter em mente que o nosso papel é ajudá-la a desenvolver a capacidade de se acalmar e se controlar. Devemos administrar os ataques de birra como situações de aprendizagem para a criança. Nossa tarefa é ajudar a criança a compreender e organizar as suas próprias emoções, e mostrar a ela que é possível recuperar o equilíbrio perdido diante de uma frustração inevitável.

Na hora da crise, fique junto de seu filho, conectado, não o abandone. Abrace-o para acalmá-lo ou simplesmente mantenha algum contato físico para que ele sinta a sua presença e a sua atenção. Deixe claro que você compreende o seu sentimento, embora não aprove o seu comportamento. Quando perceber que ele está um pouco mais calmo, e isso pode levar tempo, aí, sim, converse com ele e explique o que está se passando. Em uma linguagem acessível, diga que você entende que ele está frustrado mas que, na vida, as coisas nem sempre são como nós queremos. A estratégia pode ser resumida em conectar-se com a criança mantendo a sua perspectiva de adulto. Em outras palavras, você mostra que entende a sua chateação mas não sai correndo para dar o que ela quer.

Vamos imaginar a situação. A boneca se quebrou e a criança começa a ter um ataque. O que você faz? Corre desesperadamente para buscar a cola? Não. Quando agimos assim, a mensagem que estamos transmitindo à criança é a de que o problema ocorrido justifica o mau comportamento dela. A nossa missão é ajudá-la a sair do estado de descontrole para, em seguida, pensar em uma solução. Outra situação: a criança se joga no chão do shopping porque você não quer comprar um brinquedo. A solução é comprar o brinquedo? Claro que não. Até quando você vai suportar ficar refém dos desejos de seu filho toda vez que entra em uma loja? Você quer que ele aprenda que pode ter tudo o que quer? A equação é simples: se você correr para buscar a cola ou para comprar o brinquedo, o seu filho não vai aprender nada, não vai avançar na conquista do autocontrole, porque você estará atrapalhando o trabalho da natureza.

Diante de um ataque de birra nada é mais importante do que manter a calma e a serenidade, acolher a frustração da criança sem se deixar contaminar afetivamente. Não grite com ela, não a abandone. Mas não deixe que ela faça o que quer. Não recue! A não ser que a sua ordem ou limite tenha sido completamente sem sentido. Nesse caso, aí sim, é melhor dar um passo para trás. É melhor ceder do que ser injusto. A justiça é uma virtude, e os pais não devem jamais agir de maneira injusta. Por isso, antes de dar uma ordem ou colocar um limite, reflita. Escolha as batalhas que você considera realmente importantes. Não aja impulsivamente. Se queremos que nossos filhos desenvolvam a capacidade de autocontrole, temos que começar cuidando da nossa.

Imagem: 

“In Disgrace”, Charles Burton Barber (1845-1894) (detalhe).

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Como montar uma bela biblioteca para a criança pequena?

Ter acesso à boa literatura desde a mais tenra infância é fundamental para a estruturação do pensamento, o desenvolvimento da linguagem compreensiva e expressiva, a formação do imaginário, e a organização dos afetos. Acontece, porém, que a vida é corrida. Somos diariamente atropelados por diversos afazeres, e o projeto de montar uma boa biblioteca para crianças envolve um considerável esforço de reflexão, pesquisa e seleção. Foi por isso, precisamente, que resolvi ajudar você, com o ebook “Como Montar uma Bela Biblioteca para Seus Filhos (de um a seis anos): Guia Prático e Conceitual”.

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Quem conhece o meu trabalho sabe o quanto ele se pauta por uma atitude de atenção, cuidado e respeito pela pessoa da criança. O Guia segue essa mesma perspectiva, como não poderia deixar de ser. Não se trata apenas de ajudar você a montar uma biblioteca de qualidade para o seu filho. Trata-se, principalmente, de lhe fornecer um suporte conceitual para que essa biblioteca esteja comprometida com uma formação literária pessoal e intransferível.

Se você tem filhos entre um e seis anos e deseja proporcionar a eles esse tipo de experiência, não deixe de adquirir o Guia. São 43 páginas contendo informações, orientações conceituais, dicas práticas e duas listas de livros organizadas por faixa etária. Tudo cuidadosamente pensado e elaborado para que você possa entregar para cada uma das suas crianças, com muita segurança, o que há de melhor no universo dos livros infantis. Da melhor maneira e no melhor momento.

E tem mais. Quem adquire o ebook passa imediatamente a ter acesso ao canal Guia Bela Biblioteca no Telegram, onde, semanalmente, eu compartilho áudios em que falo sobre os livros indicados.

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O que são fábulas e como apresentá-las à criança

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No artigo anterior, falei dos contos de fadas e sugeri uma lista de livros para apresentar às crianças esse gênero literário. Hoje, vamos falar das fábulas, um gênero portador de uma tradição ainda mais longa do que a dos contos de fadas. Com as fábulas, voltamos ao tempo da Grécia Antiga.

Trata-se de pequenas composições literárias protagonizadas na maioria dos casos por animais, e cujo desfecho contém um ensinamento sobre a vida, o comportamento humano e a realidade do mundo. Quem não conhece a história da cigarra que passou o verão cantando e no inverno teve que pedir abrigo à formiga trabalhadeira, que havia juntado provisões para o inverno e se recusava a dar? Ou a da lebre convencida que, achando que a corrida estava ganha, foi tirar um cochilo e, quando acordou, havia sido ultrapassada pela lenta, porém obstinada, tartaruga?

Em sua origem ocidental, as fábulas são histórias atribuídas a Esopo, escravo grego que teria vivido no século VI AC. Elas eram tão conhecidas e valorizadas na Grécia, que sua função educativa chegou a ser citada por Platão e Aristóteles. No século I da Era Cristã, as fábulas de Esopo foram escritas, em latim, por Fedro, escravo liberto do imperador Augusto. Posteriormente, no século XVII, foram recontadas em forma de verso pelo francês Jean de La Fontaine. E o mais incrível é que, assim como ocorre com os contos de fadas, o conteúdo das fábulas continua absolutamente atual.

Embora sejam em sua maioria animais, os personagens dessas histórias apresentam qualidades e defeitos tipicamente humanos. Por isso, La Fontaine dizia que a fábula “é uma pintura em que cada um de nós pode encontrar seu próprio retrato.” Sua leitura enriquece o imaginário e a compreensão da criança sobre as circunstâncias de sua vida, sobre ela mesma e sobre as pessoas que a cercam.

Porém, é preciso ter alguns cuidados ao apresentar as fábulas às crianças, para evitar que o seu imenso potencial educativo seja desperdiçado. Em comparação com os contos de fadas, as versões originais das fábulas exigem um pouco mais de maturidade, tanto pelo conteúdo quanto pela linguagem. Apesar de sempre estarem referenciadas a um ideal ético, as fábulas são mais realistas, elas nos falam da vida como ela é, expondo a mesquinharia e a corrupção que espreita todo coração humano. É importante que o adulto faça a mediação, ajudando a criança a assimilar bem a moral da fábula, tirando da história o seu ensinamento.

A linguagem concisa e direta empregada por fabulistas como Fedro, por exemplo, pode parecer desinteressante para crianças muito pequenas. Já a poesia de La Fontaine pode lhes ser demasiadamente difícil. Por isso, para os pequeninos, na faixa etária de três a cinco anos, vou indicar “Fábulas de Esopo Para os Mais Novinhos”, da Editora Usborne. As ilustrações de página inteira despertam a atenção e o interesse da criança, e as fábulas são recontadas em narrativas curtas, simples e divertidas, sem prejuízo do seu conteúdo original. Outra boa opção, com um texto um pouco mais extenso, mas ainda fartamente ilustrado, é o  Minhas Fábulas de Esopo, de Michael Morpurgo, editado pela Companhia das Letrinhas.

Para crianças de cinco anos em diante, indico “Fábulas de Esopo”, também da Companhia das Letrinhas. Essa edição é muito bonita, com ilustrações clássicas. Nessa idade, porém, elas também já podem ser apresentadas aos versos de La Fontaine. A edição da Martin Claret reúne suas mais importantes composições poéticas, traduzidas por escritores brasileiros, e ilustradas por J. J. Granville.

A leitura de Fedro, por sua vez, poderá ser aproveitada pela criança mais tarde, na medida de sua maturidade intelectual e linguística. Sugiro que você adquira o livro, selecione as fábulas que julgar mais oportunas e adequadas para o seu filho, e vá aos poucos ajudando-o a explorar o seu potencial.

Resumindo:

“Fábulas de Esopo Para os Mais Novinhos”, Edições Usborne

“Minhas Fábulas de Esopo”, Michael Morpurgo, Companhia das Letrinhas.

“Fábulas de Esopo”, Companhia das Letrinhas.

“Fábulas”, La Fontaine (Antologia). Martin Claret

“Fábulas”, Fedro. Editora Escala. (Veja na Estante Virtual)

Por fim, é preciso dizer que esse gênero literário está presentes em muitas culturas. Tratamos aqui das fábulas da tradição ocidental. À medida em que a criança for ampliando o seu conhecimento histórico e geográfico, ela pode ser apresentada a fábulas originadas em outras tradições literárias.

 

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Como montar uma bela biblioteca de contos de fadas para o seu filho

 

 

 

 

Como montar uma bela biblioteca de contos de fadas para o seu filho


Já fiz um artigo aqui no blog a respeito dos gêneros literários que seu filho não pode deixar de conhecer. Tratei dos contos de fadas, das fábulas e da obra de Monteiro Lobato. Se você ainda não leu, clique aqui neste link para conhecer o meu argumento em detalhes. No texto de hoje, atendendo a pedidos, vou dar algumas dicas de livros de contos de fadas por faixa etária e, para introduzir o assunto, reproduzo o trecho relativo a esse gênero literário:

“Os Contos de Fadas têm origem no folclore medieval europeu. Ambientados em castelos, florestas ou pequenas aldeias, são povoados por fadas boas e bruxas más, aristocratas e plebeus, animais falantes e outros seres fantásticos que se relacionam com os humanos e contribuem, por meio de estratagemas ou encantamentos, para transformar o seu destino.

As narrativas orais dos camponeses medievais começaram a ser transpostas para a forma escrita a partir do século XII, mas foi com autores modernos como Charles Perrault (século XVII) e os irmãos Grimm (séculos XVIII/XIX) que elas adquiriram a feição que conhecemos hoje. As histórias originais eram mais violentas e trágicas do que as que contamos às nossas crianças. No processo de fixação dos contos na forma escrita, certos aspectos dos enredos e dos personagens foram sendo suavizados para se adaptar à sensibilidade urbana do leitor moderno.

Contudo, as histórias continuam muito atuais, pois tratam de temas centrais da experiência humana, como a angustiosa transição da infância para a vida adulta, o ciúme entre irmãos, a inveja da beleza, da riqueza e do sucesso, etc. Na maioria delas, o núcleo da narrativa é um conflito existencial: o herói ou a heroína buscam algum tipo de realização pessoal. No caminho, eles encontram obstáculos terríveis que precisam transpor.

Os contos de fadas cumprem ainda a importante função de acalmar a ansiedade infantil em relação à existência do perigo e do mal no mundo. O Bem e o Mal são apresentados de forma dicotômica, absoluta e explícita, permitindo às crianças trabalhar sua angústia de forma construtiva e otimista – porque nessas histórias, o Bem quase sempre vence. Os contos permitem, assim, à criança, organizar suas percepções e sentimentos, ao mesmo tempo em que ela é apresentada a arquétipos importantes da tradição ocidental.”

Explicado o porquê dos contos de fadas serem incontornáveis para a educação de seu filho, vamos então às dicas. Vou recomendar aqui quatro coletâneas que considero boas e adequadas, por faixa etária.

Para crianças entre 3 e 5 anos, sugiro “Meu Primeiro Livro de Contos de Fadas”, com adaptação de Mary Hoffman, publicado pela Cia das Letrinhas. Este livro é especialmente apropriado para as crianças pequenas tanto pela linguagem cuidadosa e mais acessível, quanto pela extensão abreviada das narrativas. Ele compreende quatorze contos de Grimm, Perrault, Andersen, Mme de Beaumont e Oscar Wild. A adaptação é da escritora britânica Mary Hoffman, que dedicou boa parte de sua carreira literária à divulgação de histórias clássicas.

Se o seu filho tem 5 anos ou mais, indico “Contos de Fadas”, da Clássicos Zahar, com apresentação de Ana Maria Machado. O livro reúne os mais conhecidos contos de Perrault, Grimm, Andersen, Joseph Jacob e outros, traduzidos a partir das versões escritas originais. São ao todo vinte contos. A edição é bem cuidada e fácil de manusear. Ideal para a leitura em voz alta, na hora de dormir.

Sugiro, porém, que você leia as histórias antes de narrá-las a seu filho. Pois, embora as versões apresentadas no livro tenham sido adaptadas à sensibilidade moderna, algumas ainda contêm elementos de violência física e moral que podem criar desconforto em nossos pequenos leitores. Você pode conversar com o seu filho sobre os trechos mais “pesados”, deixando que ele expresse as suas emoções a respeito, ou pode simplesmente  suavizar esses trechos durante a leitura e seguir adiante.

Recomendei esse volume para crianças maiores de cinco anos, por já serem mais amadurecidas tanto do ponto de vista afetivo, quanto em sua capacidade de separar fantasia de realidade. Estando mais maduras, elas poderão aproveitar melhor a beleza e a riqueza existencial contida nas histórias, sem grandes sobressaltos emocionais. De todo modo, cabe a você decidir quando apresentar cada conto ao seu filho, pois ninguém o conhece mais do que você.

Por fim, para famílias com crianças maiores, a partir dos seis, sete anos, recomendo os Fabulosos Livros Coloridos de Andrew Lang, que reúnem contos de diversos países e culturas. Recentemente, a Editora Concreta publicou o Livro Azul (37 contos), o Livro Vermelho (37 contos) e o Livro Verde (42 contos), com edições visualmente cuidadosas,  lindamente ilustradas. A princípio, eu os indico para crianças acima de seis anos porque, a meu ver, a linguagem e a extensão dos contos torna a sua assimilação mais difícil para as crianças menores. Em relação ao conteúdo, vale o mesmo que eu disse em relação à coletânea anterior. É bom que você leia os contos previamente, para que esteja preparado para fazer alguma mediação, caso seja necessário.

Esses títulos vão compor uma biblioteca de contos de fadas de alta qualidade e bem representativa. Pesquise preços, anote os títulos em sua lista de desejos. Se quiser ir ainda mais além, você pode comprar também a coletânea de contos de Charles Perrault, “Contos de Mamãe Gansa”, e “O Patinho Feio e Outras Historias”, de Hans Christian Andersen. E fique atento às publicações do blog. No próximo artigo, vou indicar antologias de fábulas para crianças, também especificadas por faixa etária. Até lá!

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Jessie Wilcox-Smith, João e o Pé de Feijão.

As telas eletrônicas e a educação de seu filho

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O hábito de passar muitas horas diante de uma tela de aparelho eletrônico tem sido associado a uma série de problemas que afetam a saúde física e mental das crianças: sedentarismo, ansiedade, agitação excessiva, dificuldades de concentração, fraca interação social, alienação do mundo real. Porém, a despeito das exortações dos especialistas para que os pais resistam à tentação de entregar celulares e tablets nas mãos de crianças pequenas, é cada vez mais comum ver um bebê olhando para a tela de um celular.

É verdade que, diante da pequena tela, o bebê fica quietinho, fascinado, parece feliz… Mas podemos dizer o mesmo de um adolescente que passa o dia todo jogando videogame, não é mesmo? Experimente abrir a porta do quarto e perguntar a ele se quer parar de jogar para passear, estudar, ou fazer qualquer outra coisa. Capaz de nem escutar. Sabemos, porém, que esse não é um hábito saudável. Da mesma forma, a expressão de fascínio de um bebê diante de uma tela não indica que você está lhe dando algo realmente salutar e benéfico ao seu desenvolvimento. Indica somente que o que se passa na tela (ou a própria tela em si) está conseguindo atrair e reter a sua atenção, mais do que as outras coisas que acontecem ao seu redor. Muitas vezes, o tempo que o bebê passa olhando para o celular acaba sendo oportuno para uma mãe cansada ou atarefada. Mas é preciso muito cuidado: esses momentos de descanso ou de liberdade podem ter um preço alto demais.

Até completar três anos de idade, o bom desenvolvimento da criança depende fundamentalmente de ela estar imersa em sua realidade. Todos os dias de sua vida são repletos de experiências inéditas: ela aprende novas palavras, descobre novos objetos, avança ligeiramente na habilidade de realizar um novo movimento. A criança só necessita de oportunidades para se maravilhar com objetos e experiências reais: estímulo para os cinco sentidos, música de qualidade, contato com a natureza, oportunidade de ouvir a sua língua materna sendo bem falada, seja por meio de leitura em voz alta, seja por meio de conversas com os pais. O adulto deve administrar essas experiências, auxiliando a criança no desenvolvimento das habilidades de observação e atenção. “Olhe esta flor amarela, que linda. Espere, vamos olhar mais um pouco. Sinta como o perfume é bom e a pétala é macia.” Mesmo que ela não entenda todas as palavras, muita coisa será assimilada, não tenha dúvida.

Ora, o acesso cotidiano às telas eletrônicas pode ir na contramão dessas necessidades, de várias maneiras. Em primeiro lugar, porque em nada favorece o contato da criança com o mundo real, muito pelo contrário. Em segundo lugar, porque ele pode afetar os padrões de observação e concentração da criança, uma vez que não lhe exige o esforço de focalizar o objeto de seu interesse em meio a outros objetos, sons, e coisas que acontecem em torno, nem tampouco permite que ela observe o mundo no seu próprio ritmo. A tela já lhe fornece um enquadramento prévio e um ritmo pré-determinado. Por fim, dependendo do temperamento da criança, a concorrência das telas pode tornar a realidade do mundo menos atraente para ela. Para muitas crianças, as telas passam a ser o único objeto de curiosidade.

É preciso levar em conta também que, uma vez acostumado com os aparelhos eletrônicos, seu bebê um dia vai ser capaz de solicitá-los com veemência e insistência. Esse momento pode vir tão logo ele esteja apto a apontar ou pronunciar algumas palavras. A cada solicitação, você terá que avaliar a situação e decidir se deve ceder ou negar. E, a menos que a sua criança seja extremamente cordata e obediente por natureza, isso pode dar ocasião a conflitos. Então, por que começar tão cedo? Por que entregar à criança algo que, além de não ser necessário nem adequado, você vai ter que eventualmente lhe negar? Quando ela for mais crescidinha, você certamente não vai ficar satisfeito se perceber que seu tempo está sendo gasto mais diante das telas do que com outras coisas que você considere importantes. Então, me diga, por que criar esse hábito quando ela ainda não tem nem consciência de que as telas existem, nem capacidade para pedir?

A partir dos quatro, cinco anos de idade, a não ser que a família construa um estilo de vida radicalmente diferente do padrão hegemônico, as telas dificilmente poderão deixar de fazer parte da vida da criança. Elas estão em toda parte, inclusive em nossas casas, e – o que é ainda mais relevante – em nossas mãos. Mesmo que os pais tomem a decisão de jamais disponibilizá-las diretamente à criança, ela eventualmente terá acesso aos aparelhos eletrônicos em ocasiões sociais, como festas de aniversário, visitas à casa de coleguinhas ou parentes, etc. Mas isso não é, necessariamente, motivo de preocupação.

Os aparelhos eletrônicos podem, sim, fazer parte da vida das crianças maiores, como elementos de entretenimento, desde que haja uma supervisão competente e incansável por parte dos adultos. Não tenha medo das telas: o importante é que você estabeleça uma medida e a implemente por meio de regras firmes e claras. Agora, se o seu filho já está dependente das telas a ponto de não se interessar por outras atividades, você tem um problema e precisa enfrentá-lo o quanto antes.

Durante um período de alguns meses, você precisará empreender um firme trabalho de desconstrução do hábito. Procure manter a criança, o máximo de tempo possível, em atividades fora de casa, em lugares onde ela não terá acesso aos aparelhos eletrônicos. Comece devagar, aumentando gradativamente as horas de abstinência. Se ela costuma correr para o computador, o tablet ou celular assim que entra em casa, chegue um pouco mais tarde, passe em algum lugar para fazer um lanche, mude ligeiramente a rotina. Ao mesmo tempo, converse com a criança sobre a necessidade de diminuir o tempo diante das telas. Diga a verdade. Explique que os aparelhos eletrônicos só serão aceitáveis se não ocuparem tempo demais em sua vida. Em casa, ofereça alternativas. Proponha brincadeiras e jogos, assista a um filme junto com ela. Você precisará, em suma, fazer concorrência às telas, mas faça isso com inteligência e serenidade, sem medo e sem ansiedade.

Além de regular o tempo de acesso das crianças aos aparelhos eletrônicos, é muito importante, também, prestar atenção ao conteúdo que elas estão assimilando. O que está se passando na tela? Se o seu filho joga, quais são os jogos? Você os considera totalmente adequados? Se ele assiste a séries e animações, qual é a origem e o conteúdo que está sendo oferecido? Se ele assina canais de youtubers, como é o conteúdo apresentado e o linguajar utilizado? Quais são os interesses que esses influenciadores despertam em seu filho? Fugir dessas considerações significa protelar o enfrentamento de um problema real e incontornável. A tarefa de supervisionar, filtrar, regular e, se necessário, vetar o acesso de sua criança a conteúdos inadequados é inteiramente sua. Sem a sua firme ingerência, pessoas desconhecidas, e que em sua maioria veem as crianças apenas como consumidoras em potencial, estarão livres para fornecer cotidianamente, e de maneira privilegiada, o alimento da imaginação de seu filho.

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Donald Zolan (1937 – 2009)

A Importância da Rotina

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Bons pais não são aqueles que se esforçam para realizar todos os desejos do filho. E isso por um motivo muito simples: nem todos os desejos merecem ou devem ser realizados. A preocupação de pais conscientes e seguros em relação às suas responsabilidades deve ser a de discernir com clareza quais são as necessidades da criança e criar condições para que, elas sim, sejam satisfeitas. A distinção clara entre desejo e necessidade é crucial para uma educação que se pretenda coerente e elevada. Mas quais seriam então as necessidades da criança pequena?

Essa questão precisa ser abordada por dois ângulos. Por um lado, precisamos estar atentos às necessidades da criança enquanto criança. Ou seja, enquanto ser humano que se encontra em uma fase específica de seu ciclo vital que chamamos de infância, fase caracterizada pela dependência extrema em relação aos adultos e pela imaturidade física, afetiva, cognitiva e social. Nesse sentido, ao descrevermos as necessidades de uma criança, estaríamos descrevendo as necessidades de todas as crianças de sua faixa etária. As diferenças pessoais e culturais, embora não devam ser de todo desconsideradas, assumiriam aqui uma importância superficial.

Por outro lado, sabemos que cada criança é um indivíduo único e insubstituível, com tendências, inclinações e modos particulares de reagir ao mundo. Nesse sentido, além de necessidades universais relacionadas ao nível etário, cada uma delas apresenta suas próprias necessidades, cujo conhecimento é absolutamente fundamental para que os pais sejam de fato capazes de dar a ela uma educação verdadeira. Cabe aos pais perceber e conhecer as necessidades pessoais de seu filho, e a partir desse conhecimento conduzir de maneira consciente a sua educação. Não existe educação elevada que não seja personalizada.

Mas então quais seriam as necessidades comuns a todas as crianças pequenas? Além das necessidades relacionadas à alimentação e à higiene, existem outras quatro que eu diria incontornáveis: atenção amorosa, estímulo para a imaginação, vida ao ar livre, e rotina. Sobre a atenção amorosa, creio que já falei o suficiente aqui no blog quando tratei da importância e da formação do vínculo de apego. Veja aqui, aqui e aqui, de preferência nessa ordem. Também já falei sobre a educação da imaginação, veja, por exemplo, aqui. Resta-me falar da importância do tempo ao ar livre, assunto que deixarei para outra ocasião; e da rotina, que é precisamente o tema deste artigo.

Toda criança precisa viver sob uma rotina estruturada, que lhe permita um certo grau de previsibilidade acerca dos eventos e emoções de cada dia. A sensação de insegurança da criança, decorrente de uma combinação entre o seu total desconhecimento do mundo e a percepção difusa de seu alto grau de dependência em relação aos adultos, precisa ser contrabalançada por uma rotina diária consistente e plena de atenção e cuidados. É preciso que seu ambiente imediato lhe inspire confiança e transmita segurança. A criança insegura precisa gastar muita energia tateando às cegas o caminho da auto estruturação emocional, ao passo que a criança segura fica inteiramente liberada para investir na expansão de suas potencialidades cognitivas e sociais.

A criança pequena é extremamente sensível à ordem exterior. Repare, por exemplo, como toda criança gosta de brincar de “esconde-esconde” mesmo estando cansada de saber o momento e o lugar em que a pessoa ou o objeto escondidos vão aparecer; de ouvir a mesma história duas, três, quatro, dezenas de vezes. Da possibilidade de prever  a aparição súbita do rosto amado, o ritmo encadeado e agradável do texto, o desfecho da história, a criança extrai uma sensação de controle que a acalma e a impele sempre em frente em sua busca pelo conhecimento. Essa extrema sensibilidade à ordem adquire uma dimensão ainda mais significativa e dramática se levarmos em conta que, para a criança, tudo é novo e excitante. É muito importante que a novidade quase infinita presente na vida infantil seja contrabalançada por uma estruturação externa do tempo e do espaço que lhe permita repousar na expectativa da regularidade.

Para a criança pequena, rotina significa, portanto, previsibilidade, e previsibilidade significa estruturação interna, confiança na vida e na capacidade de viver. Isso se traduz, na prática do dia a dia, em ter hora para comer, para dormir, para passear, para tomar banho. E em não ser exposta a estímulos dos quais ainda não é capaz de dar conta. Mas também não devemos esquecer, por outro lado, que cada criança é uma criança, e que a rotina boa para uma, pode não ser boa para a outra. Ao fim do terceiro ou quarto mês de vida, pais sensíveis e atentos já terão informação suficiente para ajustar a rotina do bebê aos seus ritmos individuais.

Um dos momentos mais importante da rotina diária é a hora de ir para a cama. Esse momento marca a alternância entre o dia e a noite, e costuma ser fonte de angústia para a maior parte das crianças pequenas. Por isso, é importante que essa hora seja sempre marcada por pequenos rituais, como o de tomar um banho relaxante, beber um leite morno. Mudanças na iluminação da casa também facilitam o processo. Mas a estratégia campeã, que eu sempre sugiro, é a de levar a criança para a cama ou para uma poltrona confortável e ler uma história em voz alta para ela. Aconchegada pelo contato físico e embalada pela voz do adulto, a criança vai percebendo e aceitando que a hora de dormir se aproxima.

De uma maneira geral, criança deve dormir cedo, e mais adiante vou explicar o porquê. Muitas vezes, porém, as circunstâncias da família não favorecem essa rotina. Por exemplo, se o pai sai muito cedo para trabalhar e chega muito tarde do trabalho, a criança que dorme cedo corre o risco de jamais o encontrar. Nesse caso, a rotina deve ser adaptada de modo a preservar o contato do pai com a criança. Devemos dar prioridade às coisas mais importantes.

Mas voltando à questão do horário: por que a criança deve dormir cedo? Na verdade, quando digo dormir cedo, o horário propriamente dito pouco importa. O que quero dizer, exatamente, é que ela deve dormir mais cedo que os pais. E isso porque a rotina da criança não serve apenas às sua próprias necessidades. Ela é importante também para a harmonia familiar como um todo. A pessoa adulta precisa de um tempo somente para si, pois sempre há outras coisas a fazer além de cuidar dos filhos. Os pais precisam ter um tempo, nem que seja o finzinho do dia, para resolver pequenos assuntos, organizar as próprias vidas, colocar a conversa em dia. Adultos sentem necessidade de conversar e interagir com outros adultos, ocupar-se com assuntos adultos, caso contrário, podem se sentir excessivamente sobrecarregados, desmotivados, e acabam se tornando menos interessantes para os filhos.

Contudo, é preciso estar sempre alerta. Rotina é para organizar, liberar, e não para aprisionar e gerar ansiedade ou conflito entre os membros da família. Nenhuma rotina, por mais pensada e bem estruturada que seja, funcionará o tempo todo de maneira perfeita. Vez ou outra, ela precisará ser quebrada, como quando estamos passeando ou temos visitas, quando membros da família adoecem, ou mesmo quando eventos corriqueiros impedem que a ordem do dia transcorra do modo planejado. O jeito é relaxar e aguardar, com tranquilidade, que tudo volte ao normal. Também é importante que a criança aprenda a lidar com esses momentos especiais, e tenha a oportunidade de sentir saudades da rotina cotidiana.

Rigidez excessiva leva à neurose, e não é isso o que queremos para os nossos filhos. Por tanto, lembre-se sempre: a rotina é muito benéfica, desde que guarde a possibilidade de ser flexibilizada, revista. Ela deve se adaptar às circunstâncias da família, e não o contrário.

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Imagem: 

John Morgan (1823-1886), “Hide and Seek”.

O Estudo do Artista

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O melhor caminho para auxiliar a criança no desenvolvimento da sensibilidade estética e dos critérios que levam à apreciação bem informada da arte, é colocá-la desde cedo em contato com obras de artistas consagrados pela tradição. Isso vale tanto para as artes plásticas como para a música. Assim pensava Charlotte Mason, educadora britânica do século XIX que criou um currículo escolar muito particular, que até hoje é utilizado em escolas do hemisfério norte e por famílias que praticam a educação domiciliar. No Brasil, é crescente o número de famílias que ensinam seus filhos em casa pelo método de Charlotte Mason. Se você quiser saber mais sobre o trabalho dessa notável educadora,  clique aqui nesse link.

Mas hoje quero falar aqui, especificamente, sobre uma atividade proposta por C. Mason para o estudo da arte. Trata-se do Estudo do Artista, que consiste em apresentar à criança, durante três meses, de seis a oito reproduções de obras de um mesmo pintor, uma de cada vez. Funciona assim. Escolha um lugar de destaque, e a cada 15 dias, disponha ali uma das imagens. Tendo sempre como medida o interesse manifestado pela criança, aos poucos, você pode explorar alguns detalhes da obra, fornecer informações sobre o artista e o contexto do quadro. O importante é não atropelar a sua curiosidade. O objetivo principal é que ela conheça a obra, veja e reveja muitas vezes, tenha a oportunidade de concentrar a sua atenção e apreciá-las de maneira livre e espontânea. O estilo do artista deixará uma impressão profunda e duradoura em sua imaginação.

A escolha do artista é livre, e fica a seu critério. Uma dica importante: não ceda à tentação de apresentar todas as obras de uma só vez. E – agora falando por mim mesma e não por Charlotte Mason – organize a atividade de um modo que, ao final do trimestre, a criança possa ver todas as obras em conjunto. Apresentei desse modo Leonardo da Vinci ao meu filho, que está prestes a completar 6 anos, e não poderia ter ficado mais satisfeita com o resultado. Lemos o “Da Vinci” da Coleção Crianças Famosas, e assistimos juntos alguns vídeos que mostravam a obra do artista em museus pelo mundo. O próximo trimestre ele vai conhecer Rafael Sânzio, e no outro Sandro Botticelli, pois, no nosso caso, o critério será cronológico. Esse ano será dedicado aos mestres do Renascimento.

Eu recomendo o Estudo do Artista, nesses moldes, para professores e pais. Trata-se de uma atividade muito simples, que pode envolver crianças de várias idades de uma só vez. Basta-nos conseguir as seis reproduções e coletar informações que nos permitam responder as perguntas que vierem. Essa parte – a da pesquisa – é aquela que nos toca diretamente: o Estudo do Artista também nos dá uma ótima oportunidade para complementarmos a nossa própria educação.

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Imagem:

Leonardo Da Vinci, “Dama com Arminho” (1489-1490)

 

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Como lidar com a criança “difícil”?

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Este é o último artigo da série de três que publiquei aqui no blog sobre o tema da obediência. Nos artigos anteriores, defini o que é obediência, mostrei a importância de cultivar esse hábito em nossos filhos, e detalhei as condições relacionais que o tornam possível. Aqui, vou tratar da questão derradeira, que resume o maior desafio de quem educa: como conquistar a obediência da criança preservando a sua individualidade?

Para começar, quero destacar dois pontos que considero cruciais. Em primeiro lugar, nada é mais importante em educação do que a Regra de Ouro: trate seu filho do modo como você gosta de ser tratado. Respeite-o como pessoa. Em segundo lugar, e não menos importante: jamais permita que seu filho desrespeite você. Nenhuma expressão de desrespeito deve passar em branco.

Isso não é fácil, eu sei. A educação doméstica é tão carregada de interações que seria realmente um milagre se conseguíssemos ter o controle pleno da situação o tempo todo. A criança oferece, naturalmente, resistência à autoridade dos pais, e isso vale até para as mais cordatas. O impulso de oposição é um instinto natural, um treino de individualidade, que começa a se fazer notar de maneira mais evidente a partir dos dois anos de idade. Lidar com essa oposição pode ser muito desgastante em alguns momentos, mas não tem jeito. A criança precisa ser educada, ela precisa ser levada a desenvolver suas qualidades e controlar os seus defeitos, de modo que possa conviver bem e elevar-se na direção do que é bom e justo.

Mas como orientar nossos filhos sem exigir que eles deixem de ser eles próprios, exigência que, por sinal, estaria fadada ao fracasso e que só produziria consequências danosas? O primeiro passo para uma atuação educacional que respeite a pessoa da criança é o conhecimento e a compreensão de suas necessidades mais íntimas e de suas disposições mais fundamentais. Sem esse conhecimento não é possível prever as suas reações e levá-las em consideração em nossa prática educativa. Ele é a chave que nos permite afirmar a nossa autoridade sem recorrer a expedientes que envolvam desrespeito, violência e humilhação ou que exacerbem os conflitos ao invés de resolvê-los.

Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que existem crianças naturalmente mais opositoras que outras. Algumas relutam tanto em ceder que podemos dizer que, para elas, “existir” quase se confunde com “resistir”. Isso pode se dar por uma questão pura e simples de temperamento, ou também por problemas de auto-regulação emocional de fundo neurobiológico, que tornam necessária uma atenção mais especializada. Vamos tratar aqui apenas do primeiro caso, embora o que eu vou dizer não deixe de ser relevante também para o segundo.

O fato é que o impulso opositor é um traço estruturante da disposição existencial de algumas pessoas, e isso se revela desde cedo. Há crianças que precisam estar o tempo todo se expandindo, se fazendo notar por sua capacidade de se impor. Elas trazem consigo, desde o berço, um forte ímpeto de afetar o mundo. No que se refere à colocação de limites, essas crianças são sempre mais difíceis de se lidar.

Há crianças, por outro lado, que não têm necessidade de se colocar o tempo todo, de expressar dramaticamente a sua individualidade, de disputar o poder com os outros, e muito menos com os pais. Elas não os confrontam, porque a capacidade de colher as impressões e absorver as orientações dos adultos está perfeitamente integrada à sua própria disposição existencial. E entre esses dois tipos, digamos, extremos, há uma infinidade de formas pessoais de lidar com os limites impostos pela realidade. Digo “infinidade” porque – não devemos esquecer – cada criança é uma configuração em si mesma.

Porém, é sempre bom lembrar que o comportamento opositor pode se formar mesmo nas crianças mais cordatas, como decorrência de circunstâncias imediatas ou mais amplas da vida. A criança pode se tornar mais resistente à ação educativa dos pais por uma série de fatores: uma relação insegura de apego, ciúmes de um irmão, ansiedade decorrente de um ambiente doméstico permanentemente desarmônico ou de uma experiência traumática, conflitos na escola, sedentarismo excessivo, etc. O estresse físico também é um gatilho muito frequente do comportamento opositor, principalmente em crianças pequenas. A criança mais fácil pode se tornar impossível simplesmente porque está com dor, sono,  fome. Por tudo isso, antes de concluir que uma criança seja “difícil” por natureza, é preciso eliminar a possibilidade de que o seu comportamento esteja sendo influenciado por fatores externos.

Se, mesmo com essa análise das circunstâncias, você identifica o impulso opositor como um aspecto da disposicão pessoal de seu filho, a única coisa inteligente a fazer é lidar com esse fato como um dado da realidade. Foi confiada aos seus cuidados uma criatura enérgica que gosta de exercer poder. Aceite o seu filho como ele é. Não o rotule, não o defina em termos depreciativos. O impulso e a capacidade de se impor não são características intrinsecamente negativas. Ao contrário, se usadas em prol de boas causas e valores, tornam-se recursos valiosos e admiráveis. Sua meta deve ser a de levar o seu filho ao melhor de si mesmo, de ajudá-lo a conduzir o seu ímpeto de dominar a um equilíbrio virtuoso, e não a de transformá-lo em outra pessoa. E isso depende de você conseguir exercer a sua autoridade sem criar uma escalada de conflitos.

A tarefa de educar a criança opositora deve ser encarada menos como um desafio e mais como uma arte. Você precisará mobilizar as suas melhores técnicas e qualidades: paciência, empatia, persistência, foco, imaginação. Fique tranquilo. Satisfeitas as necessidades normais de apego e cuidado da criança, o caráter opositor pode se tornar perfeitamente contornável, transformando-se, com o tempo, apenas em um modo particular e pessoal de reação ao imperativo de obedecer aos pais. Por outras palavras, a criança eminentemente opositora sempre testará os limites da obediência, mas, se ela for bem atendida em suas necessidades e bem conduzida, encontrará nos pais uma referência de segurança e autoridade. Aos poucos ela vai aprender a se controlar e ficará confortável com isso.

Uma maneira de lidar com a oposição da criança sem correr o risco de asfixiar a sua individualidade é priorizar aquilo que para você é essencial, dando ao acessório o lugar menor que lhe cabe. Esse discernimento é crucial para evitar que a relação seja desgastada com inflexibilidades desnecessárias. Princípios, valores e regras que sejam inegociáveis para você devem ser apresentados ao seu filho como tal. Todo o resto, aquilo que é secundário, pode ser acomodado de acordo com as circunstâncias do momento e as características da criança. Será mesmo tão imprescindível comer aquele legume pelo qual ela sempre manifestou repulsa? Vale a pena começar uma briga por causa da escolha da roupa? Por que não evitar situações que podem ser evitadas e às quais, você já sabe, seu filho oferecerá resistência?

Refletir sobre a sua hierarquia de valores na educação é absolutamente imprescindível. Mas é preciso também estar atento a uma série de fatores que podem tornar momentaneamente confusa a nossa percepção da diferença entre o que é essencial e o que é acessório. Dentre os mais frequentes, eu destacaria os estados emocionais conturbados, o cansaço intenso, e a pressão exercida pelo olhar de terceiros. Ninguém está livre dessas armadilhas, e neutralizá-las é sempre mais fácil se estivermos conscientes delas. Educar requer um constante exercício de autoconsciência, além de uma boa dose de independência em relação à aprovação alheia. Procure não agir por impulso, cultive o autocontrole e o senso de prioridade, faça um esforço para não dar à criança ordens e direções que você não esteja realmente convencido de que precisam ser inevitavelmente cumpridas ou de que ela é de fato capaz de cumprir. O seu compromisso é com o seu filho e não com a opinião dos outros. Só você pode saber o melhor modo de lidar com ele e colocá-lo no caminho da virtude.

O trabalho de educar requer uma boa dose de inteligência e serenidade. Não há manual que possa abarcar toda a complexidade da tarefa de elevar uma criança aos seus patamares mais altos. Cada pessoa é um ser único, insubstituível, e ninguém veio ao mundo para ser modificado em sua essência. As crianças estão aqui para ser acolhidas, protegidas, ensinadas e orientadas a desenvolver suas melhores inclinações. E é nesse sentido que a nossa ação educativa se reveste de um grande valor. Não devemos hesitar: temperada pela razão e pela empatia, a autoridade dos pais é uma riqueza para a criança.

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Imagem: 

“In Disgrace”, Charles Burton Barber (1845-1894) (detalhe).

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Por que é importante criar filhos obedientes?

Como conquistar a obediência de seu filho?

Como conquistar a obediência de seu filho?

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No artigo anterior, falei da importância da obediência, argumentando que um filho obediente estará sempre mais protegido do risco de se desviar do caminho desejado pelos pais. Agora, como prometi, vou tratar das condições que tornam possível a formação desse hábito na criança. E, para tanto, começo por explicar o que entendo exatamente, aqui, por “obediência”.

Na medida em que estabelecemos que o sentido da obediência filial está em seu papel formativo e protetor, fica evidente que não devemos esperar da criança o mesmo tipo de obediência que esperamos, por exemplo, de um soldado. Quando tratamos de educação doméstica, o hábito da obediência não deve ser confundido com a simples prontidão condicionada para cumprir ordens. Se a criança cumpre ordens apenas porque está com medo de ser castigada ou abandonada, ou porque espera ganhar uma recompensa, não se pode dizer, realmente, que se trate de uma criança obediente. Nada garante que ela continue a obedecer quando se vir livre das ameaças de punição ou das expectativas de prêmio.

Não estou, de modo algum, minimizando o valor do respeito filial. E é precisamente por isso que eu insisto em definir a obediência menos como um comportamento objetivo, que pode ser condicionado por gatilhos voláteis e superficiais, e mais como uma disposição moral integrada à própria subjetividade da criança, à forma como ela percebe o mundo e a sua posição na estrutura familiar. Nesse sentido, a criança pode ser dita de fato obediente quando segue, livre e espontaneamente, a orientação que recebe em casa, porque entende que esse é o modo mais correto e natural de agir. É somente assim que o hábito da obediência pode exercer uma função formativa e protetora.

Um dos fatores mais relevantes para a construção da obediência espontânea é a percepção, por parte da criança, da legitimidade da autoridade parental. A criança obedece na medida em que percebe os pais não só como fonte de cuidado, mas também como referências de comportamento e direção. E aqui chegamos então à questão crucial: quais seriam as condições que propiciam a formação dessa percepção?

O sucesso da educação doméstica, depende, primordialmente, da qualidade da relação da criança com os pais. Essa relação deve ser sólida, positiva, baseada, pelo lado da criança, no sentimento de segurança e proteção que dá origem ao que se chama, em psicologia, de “apego seguro”. Aos poucos, na medida em que a criança percebe que as ações educativas dos pais são, na verdade, expressões de atenção e cuidado, a criança vai se tornando capaz de intuir a relação entre obediência, de um lado, segurança e proteção, de outro.

Em artigos anteriores, tratei de como a relação de apego se desenvolve ao longo dos primeiros quatro anos de idade. (Para relembrar, veja, aqui, aqui e aqui, de preferência nessa ordem). Mas não é preciso esperar até que o apego esteja consolidado para estimular, na criança, o hábito da obediência. Ele pode e deve ser ensinado desde o segundo ano de vida, por meio da direção paciente e positiva. Para isso, basta que os pais estejam eles próprios seguros para tomar decisões sobre o bem-estar e a rotina do filho, bem como para orientar o seu comportamento. Se os próprios pais souberem enxergar a sua autoridade como algo benéfico e natural, a criança também vai percebê-la desse modo.

É importante, porém, que as expectativas em relação à obediência espontânea sejam proporcionais à idade. Em geral, os frutos de uma boa educação não serão colhidos antes dos seis anos, quando a criança já terá conquistado certas habilidades emocionais e cognitivas que facilitam o autocontrole dos impulsos, como, por exemplo, a capacidade de se colocar no lugar dos outros, de hierarquizar e manejar emoções contraditórias, de prever as consequências de seus atos. É preciso ter cuidado com as expectativas irreais. Enquanto a natureza não fizer todo o seu trabalho, os pais devem estar sempre atentos à necessidade de direcionar o comportamento da criança, orientando-a de maneira firme, porém gentil, sem repreendê-la com muita severidade. O importante é que ela seja conduzida na direção do que é bom e verdadeiro. Comportamentos inadequados não devem ser tolerados, mas não podemos perder de vista o fato de que a criança ainda está aprendendo a estar socialmente no mundo.

Em suma, a base afetiva segura é condição necessária para o exercício da autoridade parental genuína, cuja contrapartida é a obediência espontânea. Porém, para que ambas, autoridade e obediência, possam se efetivar, uma segunda condição ainda deve ser preenchida. Os próprios pais precisam estar seguros da legitimidade de sua posição de comando. No passado, a autoridade parental era um dado inquestionável. Hoje em dia, ela precisa ser conquistada numa batalha árdua contra uma série de obstáculos culturais.

Tenho falado aqui no blog sobre as dificuldades de educar nossas crianças num ambiente cultural que valoriza exageradamente a espontaneidade e a impulsividade, e autoriza ideias estapafúrdias como a de que os pais não têm muito a ensinar aos filhos, ou de que a criança deve ser deixada livre para fazer as suas escolhas de vida. Imaginar que a criança é capaz, por si mesma, de fazer escolhas de vida, é um enorme disparate. Escolhas de vida são feitas (ou deveriam sê-lo) a partir de princípios e critérios, e estes se formam ao longo do processo de educação. Ora, como pode então uma criança fazer escolhas de vida se ainda não formou critérios? E como podem os pais ajudar as crianças a formar critérios se a sua própria autoridade é deslegitimada? Quando os pais abrem mão do papel de orientadores, eles estão, simplesmente, passando a bola para terceiros.

Tenha sempre em mente que o exercício de uma autoridade parental temperada pela razão e pela empatia é o melhor presente que você pode dar ao seu filho. Nos primeiros anos de vida, as crianças aprendem principalmente por imitação, e costumam tomar por modelo os adultos, bem como outras crianças, que têm mais facilidade de se impor, de se fazer ouvir, de afirmar a sua perspectiva. Quando os pais não assumem com segurança o seu papel de orientadores, e não tomam para si a direção da educação dos filhos, é muito provável que estes fiquem mais suscetíveis a influências externas ao ambiente doméstico.

Mas veja bem. Quando eu afirmo que você deve exercer a sua autoridade parental sem receios ou hesitações, não estou insinuando que essa seja uma tarefa fácil. Além dos obstáculos culturais de que já falei, há que se contar, também, com a oposição da criança. A oposição é um instinto natural, um treino da individualidade. Cabe a nós, adultos, entendê-la como parte do processo e contorná-la de modo que no final das contas a situação não fuja do nosso controle.

O maior desafio da educação doméstica é levar a criança a internalizar princípios e regras sem violentar a essência de sua individualidade. Mas, como fazê-lo? Esse será o tema do próximo artigo, que fechará a série de três sobre o hábito da obediência. Falaremos de crianças fáceis e de crianças difíceis, de diálogo, prêmio e punição. E de como você pode criar estratégias para lidar com o seu filho do jeito que ele é, sem renunciar à sua própria autoridade. Não perca.

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Imagem: 

Émile Meunier ((1840 – 1895), “Portrait of a mother and daughter”.

 

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Para quem cresceu em uma cultura educacional como a nossa, na qual o desejo tem precedência não só sobre a responsabilidade individual, mas também sobre a própria realidade do mundo, pode parecer contra intuitiva a ideia de que as crianças devem obedecer a seus pais. Aliás, em nossos dias, a palavra “obediência” parece até mesmo soar mal.

Se prestarmos atenção, veremos que o verbo “obedecer” foi praticamente banido dos textos e conversas educacionais da classe falante, tendo sido substituído (mas apenas quando estritamente necessário), por eufemismos vagos, genéricos e superficiais como “aceitar limites”. Hoje em dia, não é de bom tom dizer a uma criança: “você tem que me obedecer”. O problema é o mesmo de sempre. Não importam as crianças reais, e as realidades que impactam o seu futuro. Importam somente as ideias inconsequentes que vão sendo cultivadas na bolha existencial moderninha e progressista.

Parece exagero? Outro dia passou na minha timeline do Face Book a seguinte frase: ”O verdadeiro educador é aquele que ajuda a pensar e não aquele que ensina a obedecer.” Analise essa frase. Desde quando obedecer é o oposto de pensar? Não obstante a falta de sentido, a frase tinha centenas de curtidas! As pessoas que a curtiram certamente não se deram ao trabalho de refletir sobre as implicações concretas dessa formulação quando aplicada como princípio educacional. Eu gostaria de fazer a cada uma delas a seguinte pergunta: como é possível proteger e orientar um filho que não obedece?

Imaginemos, por exemplo, um adolescente que vive com sua dedicada família em uma comunidade tomada pelo tráfico de drogas. Por mais presentes e cuidadosos que sejam, seus pais não podem evitar que ele se depare, cotidianamente, com uma enorme quantidade de modelos negativos, e tampouco que viva uma série de experiências cotidianas que o colocam em situação de vulnerabilidade. Alguém duvida que esse jovem estará relativamente mais protegido se for capaz de seguir as orientações dos pais, de ouvir os seus conselhos, enfim, se tiver formado, ao longo da infância, o hábito de obedecê-los? Ou será que os curtidores da frase nonsense diriam que é melhor deixar que esse adolescente se guie por seus próprios critérios, e tome as suas próprias decisões? 

Escolhi ilustrar o meu ponto com essa situação extrema para que não restem dúvidas de que ideias aparentemente libertárias podem ter consequências trágicas. A verdade é que, na vida real, nada pode proteger mais uma criança do que ter em seus próprios pais uma referência e um guia de como se conduzir num mundo que ela ainda não experimentou e que mal pode compreender. Muitas vezes, os próprios desejos da criança a conduzem na direção de situações cujo risco ela ainda não tem recursos cognitivos para avaliar. E é nessas situações, em que o impulso infantil colide com a orientação dos pais, que a obediência se torna tão importante. Pais que investem o seu tempo e a sua energia para formar em seus filhos o hábito da obediência dão, portanto, uma demonstração inequívoca de atenção e de cuidado.

Alguém poderia argumentar que nem todos os pais se preocupam genuinamente com o bem-estar de seus filhos. E essa é uma verdade inegável. Desde que o mundo é mundo, existem pais irresponsáveis, negligentes, e até mesmo perversos. Porém, independentemente da qualificação que daremos a esses pais, não é a eles que eu me dirijo aqui. Esses pais, muito provavelmente, não seguem o meu blog.  Estou falando com aqueles que assumem a sua responsabilidade, que tentam com todas as suas forças fazer o melhor pelos filhos, mas que, com alguma frequência, tornam-se confusos em relação à legitimidade de sua própria autoridade. O meu recado é para você, que está dedicando parte do seu tempo para ler este artigo. Seu filho precisa de sua proteção e orientação. E você só conseguirá orientá-lo, se ele for capaz de lhe obedecer.

A relação entre obediência e proteção não costuma ser questionada quando se trata da segurança física da criança. Ninguém permitirá que o filho de três anos atravesse a rua sozinho, ou viaje de carro sem cinto de segurança, por pior que seja a birra. Ora, quando se trata de orientação para a vida, a equação não é diferente. A criança que não obedece torna-se mais vulnerável a outras influências sobre as quais, com o passar do tempo, os pais terão cada vez menos controle, como a dos amigos, da mídia, dos professores. No livro Hold On To Your Kids (2004), o psicólogo canadense Gordon Neufeld discute o problema muito atual da influência crescente e nociva do grupo de pares (i. e, dos colegas de mesma idade) sobre o comportamento e a visão de mundo dos jovens contemporâneos. Nunca houve, em nenhuma época, situação semelhante. Os jovens atuais, em geral, seguem a orientação do grupo de pares mais do que a de seus pais, e este fenômeno é estimulado, em ampla medida, pela omissão desses últimos.

Em parte porque se sentem confusos em relação à sua própria autoridade, em parte porque não são capazes de assumir a parentalidade com todos os sacrifícios que ela envolve, o fato é que uma boa parte dos pais, hoje em dia, delega a terceiros tarefas que são suas. Isso se traduz, por exemplo, na expectativa de que a escola ajuste o comportamento dos filhos. E também na criação de rotinas cotidianas que estimulam uma dependência excessiva da criança em relação aos coleguinhas, que passam assim a representar referências para a formação da auto-imagem, e a ditar padrões de consumo e comportamento social.

Enquanto os coleguinhas são crianças e temos um controle relativo sobre as circunstâncias dessas interações, tudo pode correr razoavelmente bem. Mas a médio e longo prazo, quando nossos filhos entram na escola de ensino fundamental e depois na universidade, como garantir a nossa proteção se a influência dos amigos for maior que a nossa? Como lembra N. Gordon, a diferença fundamental entre a relação com os pais e a relação com os pares é que o prestígio junto aos pares precisa ser permanentemente reafirmado pelo mimetismo e pela submissão às expectativas alheias, ao passo que o amor dos pais é incondicional. E é por isso que só nós estamos em condições de proteger verdadeiramente os nossos filhos.

Dizer que é importante criar filhos obedientes não significa de modo algum que isso seja tarefa fácil. No próximo artigo, vou discutir as condições que possibilitam tanto o exercício da autoridade paterna quanto a formação do hábito da obediência nas crianças, e mostrar que é possível – embora, como eu disse, não seja fácil – levá-los a nos obedecer sem desrespeitar a sua individualidade. Ao contrário do que pensa o autor da frase infeliz que passou na minha timeline, a obediência não torna a criança incapaz de pensar por si própria. Muito pelo contrário. É justamente a proteção que resulta da obediência que permitirá à criança desenvolver, em segurança e no tempo apropriado, todas as suas tendências e capacidades pessoais. É o breve período de vida que ela passa no ninho, sob os cuidados e a influência dos pais, que lhe possibilitará tornar-se uma pessoa independente e autônoma.

Isso é exatamente o contrário do que acontece com as crianças e os jovens guiados por influências externas à família, em que a orientação não se dá no compasso do amor incondicional. Perdidos num ambiente de múltiplas referências e ao acaso de relacionamentos com pessoas que nem sempre querem o seu bem, eles se tornam afetivamente dependentes da opinião alheia. Incapazes de formar seus próprios critérios e juízos, seguem o comportamento da manada. Passam a vida repetindo ideias alheias como se fossem suas, e nunca se tornam plenamente capazes de assumir a responsabilidade por seus próprios atos.

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Imagem: Émile Munier (1840-1895), “Pardon, mama”.

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