Mestre é aquele que ensina

Mestre é aquele que ensina, e triste é a sociedade na qual isso ainda precisa ser afirmado. 

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Fala-se muito, hoje em dia, que o professor deve exercer o papel de mediador entre o aluno e o conhecimento. Não concordo. E é nesse tipo de conceituação – cuja origem pode ser retraçada desde as críticas do movimento da Nova Escola à pedagogia tradicional, no início do século xx – que reside, a meu ver, a chave para a compreensão do grave problema educacional com o qual nos deparamos hoje. O movimento da Escola Nova era muito amplo e tinha lá os seus méritos, que devem ser entendidos à luz do contexto sociocultural em que ele foi produzido. Mas a influência que exerceu sobre a visão do papel do professor foi, sem dúvida, um dos grandes desserviços que prestou à educação.   

Quando se fala em crise da educação, há muita coisa a ser discutida. Não é minha intenção aqui discutir tudo. E também não é minha intenção passar a ideia de que não havia problemas na educação escolar antiga: autoritarismos, excessos disciplinares, desrespeito à pessoa da criança. Não estou aqui para romantismos passadistas. Mas o fato indiscutível é que, no processo de crítica, o movimento escola novista jogou o bebê fora junto com a água do banho. E esse erro não será corrigido enquanto não redimensionarmos o papel do professor, purificando a discussão de todas as falácias que costumam rondá-la. Se não restituirmos ao professor o lugar que lhe é devido, continuaremos falhando no objetivo de transmitir às crianças, e principalmente àquelas que vêm dos meios sociais menos favorecidos, o legado das disciplinas que compõem o currículo escolar. 

Professor não é mediador. Professor é vetor: portador e condutor do conhecimento. Mas o professor hoje é instado, veementemente, a menosprezar o seu papel. Fico impressionada como certas frases absolutamente banais são aplaudidas e alçadas a princípios pedagógicos inquestionáveis. A educação vive o império do sentimentalismo ilógico. Menos do que a assumir de mangas arregaçadas a tarefa de ensinar, o professor hoje é convidado a “aprender enquanto ensina”, a ver “o aluno como protagonista do seu próprio processo de aprendizagem”, e a si mesmo, antes de tudo, como um “agente de transformação social”. 

A primeira frase é de uma banalidade extrema. Toda e qualquer profissão, sem nenhuma exceção eu diria, traz no processo de seu exercício a possibilidade de se aprender alguma coisa e sempre mais. Um médico aprende a ser melhor médico na medida em que interage com seus pacientes, ou seja, na medida em que exerce a medicina. Do mesmo modo, um engenheiro, um cantor, um entregador de pizzas, um policial… E, se somos inteligentes, aprendemos a ser pessoas melhores na medida em que colecionamos experiências de vida. Nesse sentido, com o passar dos anos, um professor aprenderá a ser melhor professor. Qual é a novidade? Agora, se essa frase quer dizer que um professor de matemática aprende a fazer cálculos com seus alunos, a ideia deixa de ser banal para ser absurda, e não há nem o que comentar…

Também é um truísmo dizer que o aluno é o protagonista de seu processo de aprendizagem: se não fosse o aluno o protagonista da aprendizagem, quem seria? É em torno do aluno que se tece a trama do aprender, do mesmo modo, eu diria, como é em torno do professor que se tece a trama do ensinar. Mais uma obviedade piegas.

Já a terceira frase está na fronteira entre a megalomania e a tirania. Professor agente de transformação social? Há aqui dois problemas. O primeiro é ético. Se o professor for pensado como um agente de transformação social, o aluno será pensado como um instrumento político. Tratar alunos, ou qualquer outra classe de pessoas, como instrumentos, não me parece muito bonito. O segundo problema é que, antes de visar a qualquer transformação social, o professor deveria, isso sim, visar à transformação pessoal do aluno. Sua obrigação primeira é com a criança ou o jovem que está sentado à sua frente, mente e coração abertos para ouví-lo.  

Os pais matriculam seus filhos na escola porque entendem que o professor será capaz de lhes ensinar aquilo que eles próprios, por falta de qualificação ou por força das circunstâncias, não são capazes de ensinar. O que eles desejam, para os filhos, é a transformação interna que se dá quando todo aquele que ignora ou desconhece alguma coisa passa a saber ou a conhecer. Em suma, os pais acreditam que o professor pode ajudar seu filho a se tornar uma pessoa instruída nos saberes escolares. Em que momento a sociedade deu à escola a autorização para transformar o aluno em um instrumento de transformação social no sentido político do termo? Famílias de camadas médias e altas têm a possibilidade de escolher a escola de seus filhos de acordo com a sua visão de mundo e de educação. Mas o que dizer dos mais pobres, que precisam recorrer à escola pública? Alguém lhes perguntou que papel eles conferem ao professor?

A escola moderna, como instituição, nasceu de um esforço de universalizar a transmissão do legado de gerações e gerações de pessoas sábias e esforçadas, célebres ou anônimas, que souberam dedicar a sua vida à construção de uma civilização em que os saberes são oferecidos a todos os indivíduos sem que eles precisem fazer parte de sua concepção e produção. Como já havia dito o Abade de Clunny, em outros tempos: “Somos anões no ombro de gigantes.” E os professores, o que eles são? Nada menos do que a nossa escada.

Diante disso, conceber o professor como um mero mediador é tirar da criança a vantagem que ela possui por ter nascido hoje, e não ter tido ela mesma que inventar a roda ou a teoria dos números. Quaisquer que sejam os métodos empregados, sejam mais ou menos ativos do ponto de vista da criança, o professor jamais será um mero mediador. Ele precisa estar ali, com a sua presença, a sua voz, a sua qualificação. E isso não só porque é seu ofício e seu dever ensinar o que sabe, mas também porque é na relação entre professor e aluno que se produz a centelha do verdadeiro aprendizado.

A relação entre professor e aluno é uma relação pessoal. O bom professor é capaz de se colocar no lugar do aluno, identificar-se com ele, ajustar-se ao seu ponto de observação e, ali estando, buscar o melhor meio de levá-lo a aprender. E, para fazer isso, ele precisa mobilizar não só o seu conjunto de saberes, mas também o seu repertório de qualidades humanas, tudo isso emoldurado por um genuíno entusiasmo pelo conhecimento. Sim, porque é o próprio conhecimento que deve estar no centro. É o conhecimento – que será transmitido pelo professor e assimilado pelo aluno, nos dois casos de maneira personalizada, pois não poderia ser de outro modo – o valor a ser perseguido. Perdendo-se isso, perde-se tudo. Quando o conhecimento – no sentido do patrimônio de saberes que hoje se veem distribuídos e organizados em disciplinas – deixa de ser o principal bem a ser oferecido pela escola, abrimos mão do essencial para ficar com o acessório. E tudo passa então a ser política.

Todos nós já tivemos oportunidade de constatar, com nossa própria experiência, que se aprende melhor com professores que admiramos por seu saber e por suas características pessoais. O aluno percebe quando o professor não domina o seu conteúdo, ou não sabe ensiná-lo. Uma escola pode ter os melhores materiais, as mais avançadas tecnologias e métodos; se não tiver bons professores, com pleno domínio de suas matérias, professores admiráveis, capazes de servir de modelo e de referência, a verdadeira aprendizagem não acontece. 

Ensinar é fazer compreender. E a experiência de aprender com um bom professor será sempre muito mais rica. Nenhum material bibliográfico ou concreto pode substituir o verdadeiro mestre. Simplesmente porque vai faltar aquele elemento humano, o olho no olho, a relação, a vontade de imitar, de chegar perto de onde ele chegou. Nenhuma criança vai mimetizar um autor que nunca viu ou uma placa de material dourado de madeira. O aluno só precisa acreditar que vale a pena saber as coisas que o seu professor sabe. Porque o conhecimento pode ser, por si só, um motivo de alegria e de satisfação.

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Imagem:

Albert Bettanyer, “Les taches sombres.” 

 

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A escola de Ensino Fundamental: alguns cuidados na hora da escolha

Na hora de escolher a escola de primeiro ano para o seu filho, a primeira preocupação deve ser a de discernir qual é o compromisso fundamental da instituição: transmitir conhecimento ou “transformar a sociedade”? Se for transformar a sociedade, elimine de seu leque de opções. Concentre-se nas outras. Explico por quê.

Dificilmente se encontrará hoje em dia uma escola (elas existem, mas são muito poucas) que não traga em sua carta de apresentação, por exemplo, frases como “formar cidadãos críticos”, “atuantes na sua comunidade” e coisas do tipo. Essas frases não são problemáticas em si mesmas e até soam bonitinhas. Quem não quer que seu filho se torne uma pessoa com capacidade crítica e apta a atuar de maneira positiva para melhorar a vida de sua comunidade ou sociedade? Mas o ponto crucial é precisamente a visão da escola acerca de como se forma o tal do espírito crítico. Em geral, quando a escola se coloca essa tarefa em primeiro lugar, é porque entende como “espírito crítico” uma visão de mundo e de sociedade já formatada e que será passada ao aluno sem que ele próprio tenha acesso, justamente, aos meios de criticá-la. Como formulou, com precisão, Catherine L´Eccuyer:

“É curioso que, embora haja uma obsessão para que os alunos sejam ´críticos`, tenhamos tanta alergia à transmissão de critérios. É quando o espírito crítico se torna um espírito caprichoso.”

Sim, pois não pode haver espírito crítico sem transmissão de critérios. E os critérios são formados ao longo dos anos escolares com base na aquisição de um patrimônio de conhecimentos que, por sua vez, se formou ao longo de séculos de trabalho intelectual abrangente e heterogêneo. Quando a escola se compromete com a formação de um espírito crítico sem comprometer-se, antes e sobretudo, com a transmissão desse patrimônio intelectual milenar, isso significa que ela está disposta a doutrinar seus alunos, ou seja, a transmitir a eles somente um tipo de critério, a corroborar apenas uma determinada visão de mundo e de sociedade. Em outras palavras, ela está disposta a alistá-los politicamente, a cercear na base a sua liberdade intelectual, a tratá-los como massa de manobra. Isso é o que acontece em boa parte das escolas de Ensino Fundamental hoje em dia. Os alunos saem da escola sem saber quem foi Camões, o escritor mais importante da língua portuguesa, mas perfeitamente encorajados a emitir sua opinião sobre processos políticos complexos sobre os quais não seriam capazes de responder três perguntas objetivas.  

Escolher a escola de Ensino Fundamental é bem mais difícil do que escolher a escola de Educação Infantil. No caso dessa última, os critérios são visíveis e quantificáveis (vejam o meu artigo sobre esse assunto). Já para a escolha da escola de 1º ano, você vai precisar usar a sua intuição, ler nas entrelinhas, perceber as motivações profundas envolvidas na prática pedagógica. Isso não é fácil. Por isso, a primeira providência é baixar as expectativas, controlar a ansiedade e observar tudo isso de um ponto de vista bem realista: a escola que você escolher não precisa ser a escola da vida inteira. A qualquer momento, você pode mudar de ideia e escolher outra, buscando aproximar-se cada vez mais de uma escolha correta, entendendo aqui como correta a escolha de uma escola que prioriza a transmissão de conhecimentos e a formação de um aluno que seja, ao fim do processo, capaz de pensar por si mesmo, e não saia simplesmente repetindo o jargão ideológico de seus professores.

Mas, para além da questão ideológica, existe ainda a questão da ordem e da disciplina. Uma escola sem ordem e sem disciplina pode, dependendo das circunstâncias, tornar-se uma fábrica de delinquentes. Crianças e jovens precisam de limites e de modelos dignos de autoridade. Além disso, sem ordem e sem disciplina a transmissão eficiente dos conhecimentos escolares se torna algo simplesmente impossível. E existem alguns critérios de que você pode lançar mão para tentar perceber se uma determinada escola está de fato estruturada de modo que o fluxo dessa transmissão se dê de maneira razoavelmente sólida e segura.

Primeiro ponto a ser observado: a escola possui uma carta disciplinar, ou seja, um conjunto de normas formuladas de maneira clara e sólida?  As regras de convivência são apresentadas de maneira explícita, bem como os mecanismos de correção e sanção a quem as desrespeitar? A autoridade do professor é garantida pela direção da escola? O que acontece com um aluno que xingar o professor, ou colocar um prego na cadeira do colega? A gestão dos conflitos é feita de forma a garantir aos alunos e professores, prioritariamente, um clima propício à aprendizagem? Se a escola não garantir que o ambiente escolar seja minimamente civilizado, todo o processo de transmissão de conteúdos fica prejudicado. A sala de aula precisa ser, no mínimo, um espaço seguro e organizado.

Segundo critério: a escola possui uma estratégia clara de avaliação da aprendizagem dos alunos? Essa estratégia é posta em prática de maneira regular e contínua? A avaliação é parte fundamental do processo de ensino e aprendizagem. Quando estamos falando de escola, ou seja, de uma transmissão de conhecimento em massa, não há como ter segurança a respeito do sucesso da aprendizagem sem mecanismos de avaliação regulares, e perfeitamente quantificáveis. A avaliação não diz respeito somente a testes e provas, principalmente se estamos falando dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Por exemplo, os cadernos dos alunos são vistos pela professora? Os trabalhinhos de casa são corrigidos? Os erros são somente apontados ou os alunos são levados a refazer o exercício e a consertá-los?  

Por fim, um terceiro critério: o sucesso acadêmico dos alunos da instituição. Procure saber se as crianças e jovens da escola prospectiva estão de fato aprendendo os seus conteúdos. Se for possível, peça para ver os cadernos. Mais importante que tudo, procure saber se os alunos dos anos mais avançados possuem uma escrita correta. Uma escola que se preza precisa se preocupar em ensinar corretamente a seus alunos a língua portuguesa, pois o conhecimento profundo de sua própria língua é o recurso mais relevante para que uma pessoa seja capaz de aprender com autonomia e se expressar com verdadeira liberdade.  

Perdoem-me se esse artigo for um pouco decepcionante, na medida em que não oferece a vocês uma lista de critérios perfeitamente observáveis em uma mera visita oficial à escola. Quadras poliesportivas, instrumentos tecnológicos, convênios com instituições internacionais, tudo isso é muito bom, mas acessório. Uma boa escola é aquela que valoriza o patrimônio de conhecimentos universais acumulados pelas gerações anteriores e estimula o desenvolvimento de habilidades que permitam o seu manejo inteligente e pessoalizado. E, para isso, basta uma sala de aula silenciosa e segura, e um professor bem preparado, bem intencionado e que valorize o conhecimento não como um instrumento político, e sim como um bem inalienável e precioso por si mesmo.

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Imagem:

Jean Geoffroy, “En classe, les travail des petits”

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A escolha da escola de educação infantil: critérios incontornáveis

Até os cinco anos de idade, o que a criança precisa é de acolhimento individualizado, tratamento cuidadoso e paciente, que respeite o seu temperamento e o seu ritmo próprio de desenvolvimento. E carinho, muito carinho. Nesse sentido, a escola deve de certa forma mimetizar o ambiente doméstico, como se fosse uma segunda casa para a criança. É fundamental que ela perceba que será cuidada e atendida em todas as suas necessidades.

A apresentação de conteúdos próprios à faixa etária, o estímulo ao desenvolvimento de habilidades cognitivas e sociais, a introdução à arte e à literatura, e o treinamento para as atividades de vida diária, que são parte integrante dos currículos da educação infantil, devem ser realizados, sempre, de modo a respeitar duas necessidades básicas da criança pequena – a de se sentir segura e a de ter liberdade para brincar.

Por isso, dois elementos fundamentais a serem pesquisados na hora de escolher uma escola de educação infantil são o espaço físico e o número de adultos por criança nas turmas. Em escola alguma a criança terá um atendimento tão individualizado como o que ela tem em casa, mas o número de adultos por criança numa escola é um indicativo seguro da disposição da escola de tratar as crianças com o cuidado necessário. E o espaço físico é importante por motivos óbvios: crianças pequenas precisam se movimentar, correr, desenvolver suas habilidades motoras. E isso, evidentemente, em um ambiente limpo, arejado e bem organizado.

Quando chega a idade de entrar na escola de ensino fundamental, a perspectiva deve ser outra. Nessa fase, a criança já estabeleceu, ou já deveria ter estabelecido, vínculos seguros com os pais e com outros adultos cuidadores, já confia na possibilidade de ser cuidada fora de casa, e já está mais preparada para ampliar o seu círculo de relações sociais e explorar novos ambientes. Sempre, é claro, sob a supervisão de adultos responsáveis e bem treinados.

Os critérios para a escolha da escola de ensino fundamental serão abordados em outro post.

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