Sobre a responsabilidade de quem fala pela criança

zolan39

Não raro ouço alguém dizer, com ares de conselho, que “o que é bom para a mãe é bom para a criança”. Por exemplo, quando uma mulher precisa se decidir entre deixar ou não o filho pequeno exclusivamente aos cuidados de outra pessoa por um período de tempo prolongado. Mas não se trata de um dito popular. Geralmente, essa frase é disparada por supostos especialistas em alguma área do saber relacionada à criação ou à educação de crianças.

Outro dia me narraram a seguinte situação. A mãe de um bebê de três meses, ainda em aleitamento exclusivo, pediu ajuda da pediatra para resolver um conflito. Ela queria muito viajar para participar de um evento relacionado à sua área de atuação profissional, mas teria que deixar o bebê com a avó por mais de uma semana e, consequentemente, introduzir a alimentação artificial. Adivinhe o que a médica respondeu? “Pode ir. O que é bom para você é bom para o seu filho”. A ideia por trás dessa frase é a seguinte: se a mãe estiver feliz e satisfeita, isso repercutirá positivamente na criança. E aí eu me pergunto: que mágica é essa? Qual é a base conceitual que permite a alguém fazer tal afirmação?

É claro que uma mãe cronicamente deprimida ou estressada dificilmente poderá cuidar do filho de maneira adequada. Não estará em condições de representar para ele a base segura tão essencial ao seu desenvolvimento. Ela precisa de ajuda para sair da triste situação em que se encontra e recuperar o seu eixo, caso contrário, muito provavelmente, deixará a criança insegura e nervosa. O mesmo se aplica obviamente a uma mãe gravemente enferma. Assim, em casos extremos – bem extremos, digo patológicos ou de força maior – o afastamento temporário pode ser necessário para que ela se reabilite física ou mentalmente e retome a sua rotina com a criança com o mínimo de disposição e serenidade. O inverso, porém, não é necessariamente verdadeiro. A mãe pode estar exultante por realizar algo que desejava ou que lhe dá prazer, mas se isso implica afastar-se do filho e privá-lo de sua principal referência afetiva, de que modo o seu estado emocional poderá favorecê-lo?

Os três primeiros anos de vida compõem a fase de formação e consolidação do apego e por isso a presença constante e cotidiana da mãe é fundamental. É com base na segurança decorrente dessa proximidade que a criança vai se expandir em direção ao mundo e se desenvolver. Sabemos que, para a maioria das mulheres, chega um momento em que é necessário se afastar por algum período do dia para trabalhar. Mas quanto mais curto for esse período, tanto melhor. A não ser nos casos em que a figura principal de apego não é a mãe, o que pode ocorrer quando ela está efetiva e continuamente indisponível, seja por escolha própria, seja por força das circunstâncias.

O fato é que a criança pequena ainda não consegue representar mentalmente o afeto e o cuidado maternos, ou seja, a memória da atenção que a mãe habitualmente lhe dispensa não é suficiente para deixá-la segura. Como já mostrei aqui no blog, nos primeiros anos, o que vale é a atenção que lhe é dispensada “aqui e agora”. Bem diferente do que ocorre com as crianças maiores, que podem ser acalmadas por explicações, ou por substitutos como um telefonema ou até mesmo uma fotografia. Portanto, muito embora haja situações em que afastamentos prolongados não podem ser evitados, eles devem ser evitados sempre que possível, porque nunca deixam de envolver algum custo afetivo para a criança. E mesmo que isso implique em frustração para a mãe, não é justo que seja ela a se frustrar? Pois veja a assimetria: de um lado, uma mulher adulta, com capacidade de autodomínio, e que compreende tudo o que se passa; de outro, um ser imaturo, vulnerável e dependente, que não possui recursos para expressar as suas necessidades e tampouco para lidar com o estresse causado pela ausência materna.

O que é bom para a criança é estar junto da mãe, considerando-se que, como ocorre na maioria dos casos, ela seja a sua principal referência afetiva. Isso foi demonstrado de maneira cuidadosa e detalhada pelo psiquiatra e psicanalista britânico John Bowlby em sua incontornável Teoria do Apego, à qual já dediquei três artigos. E, ademais, qualquer pessoa que lide cotidianamente com crianças pequenas pode confirmar: em caso de alarme ou stress, é a presença materna que a maioria delas solicita de imediato.

O que leva, então, um especialista em assuntos da infância a afirmar o contrário? Das duas uma. Pode ser que ele desconheça a natureza, a função e a importância do vínculo de apego nos três primeiros anos de vida. Ou talvez, mesmo sabendo o que deveria saber, ele prefira não dizer a verdade por receio de desagradar a cliente. Isso pode até ser conveniente para ambos os lados, mas não é nada honesto.

Em qualquer dos casos, o “especialista” está deixando de assumir a responsabilidade que lhe cabe: a de ser o porta-voz das necessidades da criança. Nunca é demais lembrar que, nessa história toda, ela é a única pessoa que não está em condições de defender a sua própria perspectiva.

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Imagem:

Donald Zolan, “Just We Two”

8 comentários sobre “Sobre a responsabilidade de quem fala pela criança

  1. É verdade !! Temos pessoas do nossa confiança que podemos recorrer quando precisamos tomar algumas decisões, mas que as opiniões de outros não venham ofuscar nossa real responsabilidade como mães e a importância de estarmos sensíveis a fazer o que é melhor para nossos filhos em cada momento de suas vidas.

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  2. Flávia,
    a sensação de que poderíamos ter feito melhor sempre nos acompanhará. Faz parte. Mas fico feliz de ver que você compreendeu exatamente o meu propósito com esse texto. Ter a consciência da realidade e das consequências prováveis de nossas decisões é o que nos permite tomar as melhores decisões possíveis. Mesmo que não sejam sempre perfeitas. Obrigada pelo comentário! Bjs

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  3. Excelente, Cris.

    Como é importante e sensível esse negócio de “falar pela criança”.

    Beijos.

    Cesar(pai)

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  4. Excelente texto, como sempre. Apesar de me doer – porque, vez por outra, eu me pego tendo certeza de que podia ter feito muito melhor do que fiz – acho fundamental que estas coisas sejam ditas. Em uma época de mães que, em sua maioria, precisam trabalhar, é justo que a mãe tenha consciëncia dos impactos de suas decisões, para que faça o balanço da forma que julgar melhor. Que isso possa ser feito com ciëncia, não ‘as cegas. A vida sempre cobra a fatura, cedo ou tarde.

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